TEXTO 4: Os pica-paus na guerra do Afeganistão - Emilio Gennari
  FONTE: http://www.midiaindependente.org/print.php3?article_id=8829
Você  deve estar se perguntando o que é que os pica-paus têm a ver com  a
guerra  do Afeganistão. Fique tranqüilo, não se trata de nenhum  tipo  de
avião espião norte-americano e, muito menos, de uma arma secreta de Osama
Bin  Laden. Como você sabe, os pica-paus são pássaros que usam o  próprio
bico  para retirar os parasitas escondidos atrás das cascas das  árvores.
Entre  eles,  há  alguns que são jornalistas, professores,  assessores  e
pessoas  simples que, em sua luta quotidiana contra a exploração,  tentam
furar  o  muro  das aparências para desvendar os fatos e as relações  que
atrás dele se escondem.
O  trabalho  corajoso e persistente destes pássaros  já  conseguiu  fazer
alguns  pequenos furos na muralha das declarações oficiais do  presidente
Bush e de Osama Bin Laden que disputam o papel de representantes do "bem"
contra  as  forças do "mal". Dizem os pica-paus que os buracos são  ainda
muito  pequenos  para que o bico possa passar, mas já  dá  pra  espreitar
através deles a realidade que se oculta à sombra deste muro.
Ao contarem o que viram, alguns deles me convenceram a colocar no papel o
relato de suas primeiras observações e a levá-las até você. Foi assim que
me  apressei em pegar a caneta e organizar as informações de  acordo  com
aquilo que foi possível enxergar através de cada um dos pequenos furos. É
pouco,  mas  já  permite ver com outros olhos o dia-a-dia  da  guerra  no
Afeganistão.
1. A história e suas revelações surpreendentes.
O  Afeganistão  vem sendo considerado como uma das nações mais  pobres  e
atrasadas do mundo. Até o início da década de 70, o país é governado  por
uma  monarquia  que tem pouco poder. Quem manda mesmo  é  um  punhado  de
proprietários de terras que não hesita em usar a religião muçulmana  para
legitimar a sua dominação.
Esta  realidade faz o descontentamento crescer não só entre o  povo  como
nos  setores progressistas e em parte do exército. É contando com o apoio
deles  que, em 1973, o rei Mohamed Zahir Shah é derrubado por  seu  primo
Mohamed Daud que instaura um regime republicano. A reviravolta permite as
atividades  do  Partido  Democrático do Povo do  Afeganistão  (PDPA),  de
inspiração  comunista, que tem como base os poucos  intelectuais  afegãos
que  residem  nas  cidades, os estudantes e alguns  oficiais  das  forças
armadas.  Os pontos principais do seu programa são: a reforma agrária,  a
libertação da mulher e a alfabetização em massa da população. Cedendo  às
pressões  dos conservadores, Daud assume posições cada vez mais moderadas
e,  em  1978, tenta suprimir as atividades do PDPA numa época  em  que  a
situação econômica e social do Afeganistão piora a olhos vistos.
Neste  contexto,  duas  lideranças de  esquerda  são  assassinadas  e  as
manifestações de protesto se espalham pelo país. A polícia  reage  com  a
repressão  e a prisão de vários representantes dos setores progressistas.
Mas, longe de acabar com os tumultos, estes acontecimentos abrem caminhos
para a revolta de um setor das forças armadas. Nos enfrentamentos que  se
desenvolvem  em  abril  de 1978, Daud e boa parte  do  seu  gabinete  são
mortos.  O  PDPA  assume  o  poder e proclama  o  Afeganistão  "república
democrática" sob o comando de Mohamed Taraki.
No  mesmo ano, Taraki realiza uma reforma agrária radical. Cerca  de  250
mil  camponeses são beneficiados com uma ampla distribuição de  terras  e
são  canceladas  todas  as dívidas com os antigos proprietários.  O  novo
regime liberta 8 mil prisioneiros políticos e declara que a educação é um
direito universal tanto para os homens como para as mulheres.
As  reações  dos  setores conservadores são violentas e  levam  Taraki  a
buscar  apoio  na  antiga  União Soviética. Esta  escolha  provoca  duros
embates no interior do PDPA que acabam fortalecendo a oposição.
Em  setembro  de 1979, Taraki é assassinado e substituído por  Hafizullah
Amin, homem forte do regime anterior. Incapaz de controlar a situação  do
país,  Amin é morto em dezembro do mesmo ano durante a rebelião que  leva
ao  poder Babrak Karmal, apoiado pelo exército da União Soviética que, no
final  de dezembro de 1979, ocupa a capital e, em seguida, estende o  seu
controle  ao resto do país. As mudanças iniciadas com Taraki continuam  e
os  resultados começam a aparecer. Se em 1977 só 15% dos meninos e 2% das
meninas  tinham  acesso  à  escola,  durante  o  governo  do  PDPA   esta
porcentagem  cresce  até  atingir 63 % das crianças  em  1987.  No  mesmo
período, o investimento nos serviços de saúde eleva a esperança  de  vida
de  33  para 42 anos. As mulheres dão passos importantes para  começar  a
sair  da  situação  de  marginalização em que se  encontram.  Durante  os
governos  comunistas,  o analfabetismo feminino  cai  de  98%  para  75%,
milhares  de  mulheres se integram à vida política do  país  e  abandonam
progressivamente as restrições religiosas que as marginalizavam.
Nunca  é  demais  registrar que é a posição estratégica  em  relação  aos
demais países da Ásia Central e do Oriente Médio a levar Estados Unidos e
União  Soviética  a  uma acirrada disputa pelo controle  do  Afeganistão.
Diante da ocupação do Exército Vermelho, a CIA norte-americana estimula a
criação  de grupos guerrilheiros que contam com o apoio dos proprietários
de  terras  atingidos  pela  reforma agrária, dos  serviços  secretos  do
Paquistão, da OTAN, de Israel e da Arábia Saudita.
Em  março  de  1985,  o  presidente  dos  EUA,  Ronald  Reagan,  autoriza
oficialmente  o  aumento da ajuda que, desde 1979, a  CIA  destinava  aos
guerrilheiros  afegãos.  Através do Paquistão, os  Estados  Unidos  fazem
chegar  a  eles  armas e dinheiro num montante de um  bilhão  de  dólares
anuais. A idéia com a qual a CIA procura arregimentar adeptos em todos os
países  árabes  é  a  de  que as sagradas leis islâmicas  estariam  sendo
violadas pelas tropas soviéticas que professam o ateísmo, razão pela qual
os  seguidores de Maomé deveriam se unir para reivindicar a independência
do Afeganistão e derrubar o regime esquerdista sustentado por Moscou.
Movidos  pelo  nacionalismo  e pelo fervor religioso,  mais  de  100  mil
muçulmanos  são  envolvidos nesta "guerra santa" que combate  o  exército
soviético a serviço dos interesses dos EUA. É neste contexto que  um  dos
filhos  da elite da Arábia Saudita, Osama Bin Laden, se torna um estreito
colaborador da CIA e passa a integrar as fileiras do Partido Islâmico  de
Gulbudin Hekmatiar.
Em  dez  anos  de ataques, os guerrilheiros armados pelos Estados  Unidos
destroem  quase  duas  mil escolas, 31 hospitais,  dezenas  de  empresas,
várias centrais elétricas, 41 mil quilômetros de vias de comunicação, 906
cooperativas de agricultores, explodem bombas em cinemas e praças  cheias
de  gente.  Os  que Reagan chama de "lutadores da liberdade",  Bin  Laden
entre  eles, se dedicam a matar sem piedade mulheres, crianças,  anciãos,
líderes  religiosos  partidários  do governo  e  professores.  Apesar  do
requinte  de  crueldade com o qual costumam agir, os guerrilheiros  nunca
são  chamados de "terroristas" nem pelos EUA e nem pelos países europeus,
chegando,  no  máximo, a receber o apelido de "rebeldes" após  utilizarem
mísseis  ingleses  e estadunidenses para derrubar dois aviões  civis  das
linhas aéreas do Afeganistão.
Em  setembro  de  1987,  Babrak Karmal se demite do  cargo  e  o  general
Najibullah  assume  o  seu  lugar.  Pressionado  pela  nova  política  de
Gorbatchev  o  novo  presidente  tenta  dar  início  a  um  processo   de
pacificação que é recusado pelos guerrilheiros. Entre agosto  de  1988  e
fevereiro de 1989, o exército soviético sai do Afeganistão. A situação do
país  se  torna  ainda  mais tensa não só pelos enfrentamentos  entre  os
guerrilheiros  e  as  forças de Najibullah, como pelas  divisões  que  se
manifestam entre os 15 grupos armados que lutam para derrubar  o  governo
afegão,  8  dos  quais são muçulmanos xiitas enquanto  os  outros  7  são
sunitas.
Em  maio  de  1992,  o  exército de general Najibullah  é  derrotado,  os
guerrilheiros ocupam a capital do país e, em junho do mesmo ano,  nomeiam
Burhanudin  Rabani  como presidente interino. A sua  tentativa  de  fazer
conviver  a ala moderada com o setor fundamentalista do Partido  Islâmico
de  Hekmatiar  não  vinga e as duas facções se enfrentam  numa  sangrenta
guerra civil.
Em  1996,  os  integralistas islâmicos (Talibãs) tomam  o  poder.  O  seu
exército  continua  contando  com  a  estrutura  guerrilheira  dos   anos
anteriores.  Nos campos de treinamento do Afeganistão e do Paquistão  são
preparadas,  agora,  as  forças que vão se  opor  aos  grupos  muçulmanos
moderados (que formam a "Aliança do Norte") e as que ajudarão a sustentar
a  guerra separatista na Chechenia, apoiada pela CIA. A presença dos  EUA
em  mais  este conflito não é explicada por motivos nobres.  Chechenos  e
norte-americanos  estão interessados em afastar a Rússia  das  abundantes
jazidas  de petróleo do Mar Cáspio. A independência da Chechenia  tiraria
das  mãos de Moscou o controle do principal oleoduto que sai da região  e
abriria  caminhos  para  a exploração dos poços por  parte  das  empresas
inglesas e norte-americanas.
Neste  contexto,  o  Afeganistão seria uma espécie de ponto  de  passagem
obrigatória  de  um  oleoduto  e  de um gasoduto  que  transportariam  os
combustíveis  a  serem embarcados rumo aos Estados Unidos  e  ao  Extremo
Oriente. Mas há um imprevisto. O Talibã se opõe a este brilhante plano da
CIA   e   os   aliados  de  ontem  se  tornam  inimigos  dos   interesses
estadunidenses  que  hoje  aguardam ansiosos a sua  concretização.  Vamos
entender porque isso acontece.
Contrariando  as  aparências, em nenhum momento  Osama  Bin  Laden  é  um
defensor  dos  fracos  e  oprimidos contra  os  interesses  das  empresas
multinacionais.  E  também  ele  nunca  traiu  o  setor  da  elite  árabe
interessado  em ampliar seu domínio no Oriente Médio e na  Ásia  Central.
Ciente dos limites das reservas de combustíveis fósseis, este setor busca
o  pleno  controle  das  fontes de energia e  a  progressiva  redução  da
influência americana sobre a região. Mas, para isso, o primeiro passo é o
de  desestabilizar as atuais monarquias da Arábia Saudita  e  dos  países
próximos  que, hoje, têm uma posição subserviente em relação aos  Estados
Unidos. A motivação religiosa do seu grupo é um elemento importante  para
fazer  com que as massas muçulmanas empobrecidas se levantem contra  seus
governantes e abram caminhos rumo a um estado islâmico fundamentalista  e
capitalista. O apoio popular, o controle das jazidas e a ação  terrorista
dos  membros  de sua organização (Al-Qaida) seriam elementos chaves  para
começar  a  reverter a situação de dependência em relação aos  interesses
norte-americanos e ingleses.
Tenha  sido  ou  não  Osama Bin Laden a planejar os atentados,  a  guerra
declarada  pelos  EUA  parece  ser  uma  mão  na  roda  tanto   para   os
fundamentalistas  afegãos  como  para os  interesses  ingleses  e  norte-
americanos.  De  um  lado, os ataques ao Afeganistão  obrigam  os  países
árabes  e muçulmanos a escolherem entre Bin Laden (e a suposta defesa  da
religião  islâmica)  e  George W. Bush. Ao optarem  pelo  apoio  ou  pela
neutralidade em relação aos EUA estes regimes tendem a acirrar  as  ações
dos grupos que se opõem a seus governos. Ao escolherem Bin Laden, não  só
perdem   um   importante  aliado  militar  como   este   se   transforma,
automaticamente,  em  seu  inimigo.  As  manifestações   que   já   foram
registradas  nas ruas do Paquistão e da Indonésia são apenas uma  pequena
amostra do que pode vir a acontecer em níveis bem mais amplos.
No  que  diz  respeito aos Estados Unidos, a guerra é um meio  necessário
para  reafirmar o seu poder no mundo e tentar estabelecer em  bases  mais
favoráveis  e duradouras o seu controle sobre as reservas de  petróleo  e
gás  natural. Não é por acaso que EUA e Inglaterra se apressam em  manter
contatos  com  a família e o ex-rei do Afeganistão, Mohamed  Zahir  Shah,
deposto  em 1973, para que possam assumir o governo provisório  da  nação
após  a  eventual  vitória das tropas aliadas. Ciente de sua  fragilidade
política e da realidade do país, devastado por anos de conflito,  o  novo
governo  não  passaria  de  uma  marionete cujos  movimentos,  em  última
análise,  seriam  ditados  pelos interesses do capital  inglês  e  norte-
americano.  É claro que isso demandaria ações adicionais para neutralizar
a  atuação dos guerrilheiros da Aliança do Norte que hoje recebem armas e
dinheiro  da  Rússia  (que também quer garantir o seu  controle  sobre  a
região  do Mar Cáspio), mas esta já é outra questão a ser delineada  pelo
desenrolar do conflito.
Imagino  que  depois  desta  chuva de dados  históricos,  contradições  e
surpresas,  você  já deve estar meio cansado. Eu sei que  não  foi  fácil
segurar  o  tranco,  mas, confesse, depois do relato  deste  pica-pau  as
coisas  começam a ficar mais claras. Sabendo que as próximas páginas  vão
apresentar  elementos  intrigantes, o segundo  representante  da  espécie
sugere que você tome um café e dê uma boa espreguiçada porque vem aí ...
2. O problema das fontes de energia.
Com  certeza, você deve ter percebido que o pica-pau anterior nos alertou
sobre  uma  disputa que vem acontecendo há mais de uma década:  a  guerra
pelo  controle  das  reservas de petróleo e de gás  natural.  Sabendo  da
importância deste assunto, ouvi com atenção o que outro pássaro destemido
tinha  a  dizer  após a olhada que ele conseguiu dar através  do  segundo
pequeno furo que já foi feito na muralha.
Antes  de  começar o seu relato, ele me aconselhou a pegar um Atlas  e  a
abri-lo  nas  páginas  que contém os mapas do Oriente  Médio  e  da  Ásia
Central.  Dessa  forma, é bem mais fácil acompanhar e  entender  os  seus
argumentos.  Dada  a  dica, aí vai a narração que  ele  me  fez  com  uma
paciência e precisão surpreendentes.
Diz  o pica-pau que se o consumo mundial de petróleo continuar aumentando
do  jeito  que está, até 2020 estarão esgotadas cerca de dois terços  das
reservas  de combustíveis fósseis do planeta. Um prazo de 19 anos  parece
algo  distante  no  tempo,  mas,  como  se  trata  de  uma  matéria-prima
estratégica para a economia mundial, a corrida para garantir o  acesso  a
estes recursos vai se acirrar cada vez mais.
Neste  contexto, a posição dos Estados Unidos é bastante vulnerável  por,
pelo  menos,  três razões. A primeira vem de uma constatação inquietante.
Se  os  EUA tivessem que contar somente com as reservas que estão em  seu
território  teriam petróleo suficiente para não mais do que quatro  anos.
Isso  sem  contar  que, por exemplo, a exploração das jazidas  do  Alaska
demandaria investimentos mínimos da ordem de 20 bilhões de dólares só  na
construção  de  um  oleoduto e enfrentaria fortes  oposições  dos  grupos
ecologistas.
A segunda está no fato de que 82 em cada 100 barris do petróleo importado
pelos Estados Unidos vem da Arábia Saudita. A monarquia que governa  este
país,  principal  aliado dos EUA no mundo árabe,  enfrenta  uma  oposição
crescente  contida  através de uma dura repressão  a  toda  expressão  de
sentimento  antigovernamental. Apesar dos sucessos obtidos até  agora,  a
freqüência  dos  ataques terroristas na Arábia e  o  descontentamento  em
relação ao seu governo são suficientes para vislumbrar que esta dominação
não vai durar para sempre.
O  último motivo de preocupação não repousa somente na constatação de que
países  como  o  Irã  e  o  Iraque estão longe de ter  um  relacionamento
amigável  com  os  Estados Unidos, mas, sobretudo,  no  fato  de  que  as
empresas  de  capital francês (Total e Elf) fizeram pesados investimentos
no  Irã e se associaram à Rússia na exploração das jazidas do Mar Cáspio.
Esta  aliança  permite  à Rússia controlar, direta ou  indiretamente,  um
território  que  inclui as regiões produtoras do Cáucaso  (entre  elas  a
Chechenia) e de boa parte da Ásia Central.
Uma  saída  para  a  situação  desconfortável  em  que  se  encontram  os
interesses norte-americanos já havia sido revelada no início de 1998 pelo
Tenente  Coronel da Reserva Lester W. Grau que, entre outras coisas,  foi
assessor  político  e econômico no quartel geral das  Forças  Aliadas  da
Europa  Central em Brunssum, Holanda. Na matéria publicada pela  revistas
Foreign  Affairs,  Lester  reconhece  a  fragilidade  das  condições   de
abastecimento  dos Estados Unidos, avalia as alternativas  para  melhorar
esta  situação  e  aponta como caminho mais viável  a  construção  de  um
oleoduto  que  sairia  das jazidas do Cazaquistão  ou  do  Turcomenistão,
próximas  ao  Mar Cáspio, passaria pelas cidades de Herat e Kandahar,  no
Afeganistão, entraria no Paquistão por Quetta e terminaria  no  porto  de
Karachi.  Daí petróleo e gás seriam facilmente embarcados rumo  aos  EUA,
China e Japão evitando assim as águas conturbadas do Golfo Pérsico que já
foram palco de violentos enfrentamentos. O custo da obra giraria em torno
dos 2 bilhões de dólares e daria acesso a reservas de petróleo 33 maiores
que  as  da Alaska e a uma quantidade de gás natural estimada em  50%  do
total  já  descoberto  a  nível mundial. O único  problema  técnico  é  a
presença  em território afegão de um tal de Osama Bin Laden cujas  forças
se recusam em atender às expectativas de seus antigos aliados.
Eu  já  estava fechando o Atlas quando o pica-pau enfiou o bico entre  as
páginas e o abriu no mapa do Extremo Oriente. De início não entendi,  mas
ele  me  disse que eu estava esquecendo de dois países importantes  nesta
disputa  pelo acesso aos combustíveis fósseis: a China e o Japão.  Aquele
pássaro  sabido  me contou que, nos dois últimos anos, a  China  mudou  a
configuração  de  sua Força Aérea de defensiva para ofensiva  e  produziu
novos  mísseis estratégicos de longo alcance. Além disso, vem  deslocando
boa parte de seus efetivos militares que estavam na fronteira norte com a
Rússia  para  seu  lado oeste (de onde espera aumentar o fornecimento  de
petróleo  e  gás  natural) e para os mares do Leste e do  Sul  da  China.
Aparentemente,  isso  poderia ser explicado  em  função  das  conturbadas
relações  políticas deste país com a ilha de Taiwan que já sofreu  sérias
ameaças  militares. Mas uma análise mais atenta revela que  é  justamente
nestes  mares  que  se encontram jazidas promissoras de  petróleo  e  gás
natural.
Na corrida às reservas de combustíveis fósseis, a China já declarou o Mar
do  Sul como parte do seu território marítimo nacional e reafirmou o  seu
direito de usar a força para protegê-lo. Esta postura agressiva estimulou
a  Indonésia, a Malásia, a Tailândia, o Vietnam e as Filipinas a reforçar
seus  efetivos  aéreos e navais nesta região cujo controle  é  objeto  de
disputa.
O  Japão  não ficou pra trás e aumentou a sua capacidade de operação  com
novos navios de guerra e aviões de combate armados com mísseis. No Mar do
Leste  os  japoneses estão disputando diretamente o controle das  futuras
jazidas  e no do Sul procuram garantir não só a manutenção de suas  rotas
comerciais  com  o  sudeste  asiático como  o  próprio  abastecimento  de
petróleo.  De fato, 80% dos petroleiros que levam o produto para  o  país
atravessam  as  águas  do Mar do Sul da China e uma guerra  nesta  região
representaria um alto custo para o Japão.
Ciente  de  todas  as  implicações e do jogo de interesses  que  estariam
envolvidos  num possível conflito neste canto do globo, há três  anos  os
Estados  Unidos vêm pressionando o Japão para que assuma  um  papel  mais
ativo  no  equilíbrio  militar daquela área. Isso implicaria  em  pesados
investimentos  que  superariam as necessidades de  autodefesa  permitidas
pela  constituição  nipônica.  Além dos limites  legais,  o  horror  e  a
rejeição  diante  de um ataque armado a outro país são sentimentos  ainda
presentes  entre o povo que não consegue esquecer os efeitos devastadores
das  bombas atômicas. Ao mesmo tempo, porém, não faltam especialistas que
vêm  apontando  os gastos em armamentos, a serem realizados  pelo  estado
japonês,  como  um caminho para enveredar numa nova fase  de  crescimento
econômico,  além,  claro, de poder enfrentar melhor  as  tensões  com  as
nações vizinhas.
Diz  o pica-pau que ele ficou preocupado com a decisão do Japão de enviar
navios  de  guerra em apoio à esquadra norte-americana. Ele  sabe  que  a
ajuda se dará nas áreas de transporte, reabastecimento, serviços médicos,
proteção às instalações militares dos EUA no Japão, apoio aos serviços de
inteligência  e  ajuda humanitária aos refugiados. Mas,  após  o  fim  da
segunda  guerra mundial, esta é a primeira vez que o país envia parte  de
suas forças armadas para uma zona de guerra longe de seu território  e  a
utiliza para tarefas que nada têm a ver com a sua autodefesa.
Ao   que  parece,  em  nome  da  necessidade  de  responder  aos  ataques
terroristas do dia 11 de setembro como "renovado desafio à liberdade",  o
Japão  ensaia os primeiros passos para justificar um aumento  dos  gastos
militares  e  levar as pessoas a reduzir suas resistências em  relação  à
idéia  de  uma guerra ofensiva. É como se os senhores do poder estivessem
tirando os sapatos para entrar na consciência do povo sem serem ouvidos e
plantar  aí  as  sementes das atitudes que gostariam  de  ver  brotar  no
futuro.
O  pica-pau me garante que as nuvens no horizonte dos Mares da China  não
estão  ainda tão escuras a ponto de ameaçarem uma tempestade iminente.  A
chuva  ainda  pode demorar, mas a depender do desfecho dos enfrentamentos
no  Afeganistão, o aumento da tensão nesta região do mundo  tende  a  ser
inevitável.  Na dúvida, é melhor ficarmos de olhos e ouvidos bem  abertos
já  que, por um bom tempo, as notícias que virão do Extremo Oriente serão
cobertas pelo show de imagens da parafernália de guerra norte-americana.
3. A "guerra nas estrelas" como caminho para a dominação mundial.
Assim  como  uma conversa puxa outra, o relato do pica-pau  anterior  foi
seguido pela narração de outro que se atreveu a espreitar pelo buraco que
chamou  de  "guerra nas estrelas". Confesso que, de início,  fiquei  meio
desconfiado, como quem acha que o pássaro, desta vez, está exagerando nas
cores,  mas  ele  me  mostrou  como cada peça  da  política  armamentista
estadunidense encaixa nesta idéia geral.
Não  é  uma  novidade  pra ninguém o fato de que, nos  últimos  anos,  as
fábricas  de armas dos Estados Unidos andavam mal das pernas.  O  governo
havia reduzido a compra de suprimentos das forças armadas e as restrições
comerciais  impostas a vários países impediam o aumento  das  exportações
das  mais  caras  e  eficientes máquinas mortíferas. A situação  era  tão
gritante  que,  em  maio do ano 2000, um grupo de especialistas  reunidos
pelo  Pentágono chegava à conclusão de que era necessário e urgente fazer
com  que este setor da indústria "ganhasse mais dinheiro". Respondendo  a
este  apelo,  o então presidente, Bill Clinton, reduzia as restrições  às
exportações  de  artefatos  bélicos dos EUA  com  o  claro  propósito  de
aumentar  os  lucros  das  empresas e, de conseqüência,  suas  atividades
produtivas e de pesquisa.
Por  importante  que fosse, esta ajuda não substituía  os  gastos  que  o
estado  teria caso fosse viabilizado em grande escala o escudo de  Defesa
contra  Mísseis Balísticos (DMB), conhecido também pelo nome  de  "guerra
nas  estrelas".  O  problema  aqui não era  tanto  a  disponibilidade  de
recursos  ou a falta de vontade política do Congresso, mas sim a oposição
internacional  a este projeto apontado como um instrumento  de  dominação
mundial.
Por  submissas  que sejam as nações de planeta, nenhuma  delas  engole  a
idéia  que o DMB é apenas uma arma de caráter defensivo para proteger  os
Estados  Unidos  dos  ataques com foguetes nucleares que,  possivelmente,
seriam  lançados  por  países que se opõem à sua política  internacional.
Sabendo do poder de destruição destas armas, do arsenal e dos sistemas de
defesa já existentes, disparar um míssil nuclear contra os Estados Unidos
seria uma ação suicida para qualquer governo. Estas simples constatações,
acompanhadas  das ameaças de uma nova corrida armamentista envolvendo  os
países  do  Oriente  Médio, a China, a Índia, o  Paquistão  e  a  própria
Rússia, estavam esvaziando o esforço da diplomacia norte-americana.  Esta
fazia  realmente o impossível para mostrar que a segurança dos EUA estava
em perigo e que o DMB era uma necessidade para a paz mundial.
É  neste contexto que, em maio do ano 2000, a conferência da ONU sobre  o
Tratado  de  Não  Proliferação de Armas Nucleares se pronunciou  por  uma
ampla condenação do DMB com o argumento de que deitaria por terra décadas
de acordos internacionais para a redução e o controle das armas nucleares
e promoveria uma nova corrida armamentista.
A  bem  da  verdade, estas reações "oficiais" escondiam a  realidade  que
havia  sido  expressa pelo representante da China ao discutir  na  ONU  o
projeto  "guerra nas estrelas" do então presidente Ronald Reagan: "quando
os  Estados  Unidos se convencerem de que possuem tanto uma longa  lança,
como  um forte escudo, poderão ser levados a concluir que podem destroçar
qualquer país, em qualquer lugar do mundo, sem perigo de retaliações". Em
português  claro, se é possível dar porrada sem se atingido, ninguém  vai
ter  coragem  e  ousadia suficientes para se opor  aos  desmandos  norte-
americanos  e, de conseqüência, os interesses econômicos que  carregam  a
bandeira estadunidense estarão protegidos em qualquer lugar do planeta.
Você entende que, diante do poder de fogo deste sistema de "defesa",  não
é  preciso efetuar nenhum disparo para que todos se disponham a obedecer.
Por si só, a sua existência já constituiria uma ameaça assustadora. Seria
só  o  Tio  Sam  bater o pé para pôr todos pra correr. E isso,  longe  de
representar  um futuro de liberdade, igualdade e paz, seria  sinônimo  de
dominação,  de  aprofundamento da desigualdade e  da  exploração,  de  um
estado de terror e de guerra permanentes.
O  pica-pau  me confessou que ele adoraria reconhecer que suas conclusões
estão  erradas, mas as matérias publicadas pelo New York Times, Financial
Times  e Foreign Affairs em maio e junho de 2001 dizem que, infelizmente,
suas impressões podem estar corretas. O verdadeiro objetivo do escudo  de
Defesa  contra  Mísseis Balísticos é o controle do  espaço,  o  que,  nas
palavras do atual Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld,  implica
em  "colocar armas ofensivas no espaço". Em outras palavras, não bastasse
o  perigo  constituído pelos arsenais terrestres, a opção norte-americana
aponta  para  a  militarização  efetiva do espaço  exterior.  Isso  seria
realizado  com  armas capazes de atingir não só os mísseis (que  poderiam
ser  disparados  da  terra) e outros alvos civis ou  militares,  como  os
satélites  que orientam os sistemas de defesa e garantem as  comunicações
entre as demais nações.
Levando em consideração que o desenvolvimento e a produção das armas anti-
satélite é bem mais simples do que a operacionalização do DMB, haveria um
aumento da corrida aos armamentos espaciais por parte de um bom número de
países.  A  vantagem  competitiva das empresas estadunidenses  garantiria
seus lucros e o poderio dos Estados Unidos sobre o mundo.
Aliás,  foi  por  estas razões que, recentemente, os EUA se  recusaram  a
reafirmar o Tratado do Espaço Exterior de 1967 (que proíbe a colocação de
armas no espaço) e, desde janeiro de 2001, vêm bloqueando todas as seções
da  conferência  da ONU sobre desarmamento. Isso apesar das  pressões  da
Rússia  e  da China que, cientes do seu atraso tecnológico e  dos  custos
proibitivos deste projeto para suas economias, apelavam para  a  completa
desmilitarização do espaço, a redução do número de ogivas e a criação  de
zonas livres de armas nucleares.
Os atentados terroristas do dia 11 de setembro mostraram que a América é,
de fato, vulnerável e que há vários países querendo prejudicá-la. Somando
esta  constatação às pressões internacionais articuladas pela dupla Bush-
Blair ao redor da necessidade de apoio das demais nações à luta contra  o
terrorismo,  o resultado pode ser explosivo. A médio prazo, a perspectiva
é  a  de  que  o  peso  dos argumentos americanos a favor  do  DMB  venha
aumentando  tanto  no interior da ONU como na relação com  as  principais
potências do planeta. Isso não significa que a indústria armamentista vai
ter  que  esperar para engordar seus lucros. O ritmo de suas máquinas  já
foi aumentado após a decisão de declarar guerra ao Afeganistão e as ações
de  indústrias  como a Honeywell International, Locked  Martin,  Rayteon,
Northrop Grumman e a Boeing (que, além de aviões, fabrica também  mísseis
e  satélites) são as únicas que se valorizaram mesmo nos dias  em  que  a
Bolsa  de  Valores  de  Nova Iorque registrava seguidas  quedas  em  seus
indicadores. Para elas, esta guerra (à qual já foi destinada a quantia de
344  bilhões  de  dólares)  é  apenas uma espécie  de  tira-gosto  quando
comparada às possíveis encomendas do projeto de militarização do  espaço.
Pelo  visto, os urubus já estão se posicionando com o olhar  atento  e  o
bico afiado. O desfecho do conflito no Afeganistão é que vai dizer quanta
carniça continuará sendo oferecida à apreciação de seus paladares.
Antes  de  ir  embora,  o  pica-pau me  fez  reparar  que  nenhum  escudo
antimíssil pode deter o que ele chamou de "terrorismo atômico". De acordo
com  seus  conhecimentos,  a  carga de "uma  bomba  nuclear  que  pudesse
facilmente  varrer  Manhattan e matar 100  mil  pessoas  é  uma  bola  de
plutônio que pesa 15 libras (em torno de 7 quilos). Ela é pouco maior  do
que  uma  bola  de futebol e pode ser transportada para  o  interior  dos
Estados Unidos numa mala de viagem".
Não,  infelizmente isso não é ficção científica. O míssil que  carrega  a
ogiva  é  grande  por causa dos motores, dos tanques de  combustível,  do
sistema de navegação e dos demais etceteras que o fazem funcionar, mas  a
parte  que  vai  fazer o estrago é pequena. Sabendo que  com  a  confusão
causada pelo fim da União Soviética houve contrabando de peças e material
nuclear,  nada  impede que tais cargas tenham caído nas  mãos  de  grupos
terroristas  que contam com as polpudas quantias de dinheiro  necessárias
para  realizar  este tipo de compra. É claro que as coisas  não  são  tão
fáceis assim, mas esta possibilidade é bem menos remota do que parece.
Não bastasse este perigo, os recentes casos de contaminação pela bactéria
antraz revelam que as armas químicas e biológicas são, provavelmente, uma
ameaça  ainda  maior para os países ricos. Ainda que a  sua  disseminação
seja  razoavelmente  simples, a transformação deste micro-organismo  numa
arma  mortal é bastante complexa e não pode ser realizada em laboratórios
de  "fundo  de quintal". O pica-pau me disse que, provavelmente,  os  EUA
correm  o  risco de provar o seu próprio veneno. De fato, além  da  atual
oposição  da  administração  Bush  ao  controle  das  armas  químicas   e
biológicas, o próprio governo Clinton se encarregou de sabotar os acordos
internacionais  sobre esta matéria. Por anos a fio, ele não  financiou  e
deixou  de  realizar as inspeções internacionais e as  demais  ações  que
poderiam  garantir  a eliminação deste perigo para a vida  da  humanidade
porque  estava preocupado em "proteger as companhias farmacêuticas  e  de
biotecnologia americanas". O resultado já está debaixo dos nossos  olhos:
qualquer  pó branco "suspeito" é motivo de pânico e de correrias  que  só
favorecem as indústrias de antibióticos e de máscaras antigás.  Quando  o
lucro vem antes da vida, o resultado final não pode ser diferente do  que
já cansamos de constatar.
Dito  isso,  o terceiro pássaro bateu asas e saiu apressado  de  volta  à
muralha.  Já estava achando que o meu trabalho de relator havia terminado
quando  vi  chegar um pica-pau com as penas meio chamuscadas  pelo  fogo.
Cansado e ferido, me conta que um míssil das "forças aliadas" o pegou  de
raspão  na hora em que estava tirando o olho do último buraquinho.  Ainda
não  sabe se esta foi uma retaliação contra a espécie ou uma ameaça, mas,
apesar   dos  pica-paus  não  terem  um  "FBI"  e  nem  uma  "CIA",   são
suficientemente inteligentes para entender que não se trata de um erro ou
daquilo   que  numa  guerra  engorda  a  lista  dos  "danos  colaterais".
Preocupado em divulgar suas informações, me pede para não ficar enrolando
e chamar o seu relato com o título...
4. Matando quatro coelhos com uma paulada só.
Além  dos  problemas  da  indústria armamentista e  de  abastecimento  de
petróleo  e  gás  natural,  a economia norte-americana  estava  patinando
naquela  que  os  especialistas chamam de "crise de superprodução".  Sim,
você entendeu bem, não se trata de uma situação de falta, mas de sobra de
capitais  e de mercadorias. É uma realidade que, de tempos em tempos,  se
instala  em  qualquer  país  capitalista após  uma  fase  de  crescimento
econômico.
A  causa do seu aparecimento não está no desemprego, mas no mecanismo que
faz girar as engrenagens da exploração: a produção da riqueza é coletiva,
mas,  na hora de dividir o bolo, são os patrões que se apropriam da fatia
maior.  Eles  a usam não só para ter condições de vida muito melhores  do
que as nossas, como para realizar novos investimentos aumentando assim  o
número  de bolos e o tamanho de suas fatias. Como os trabalhadores  e  as
trabalhadoras ficam só com as migalhas, não é difícil você entender  que,
mais dias menos dias, a sociedade vai viver o absurdo de uma situação  de
pobreza em meio à abundância.
Aparentemente,  a  saída poderia ser a de promover o  encontro  entre  os
famintos  e  a comida, os descamisados e a roupa elevando os  salários  e
distribuindo  melhor  a  renda. Mas isso é  impossível  de  acontecer  no
sistema  capitalista,  pois o aumento dos vencimentos  faz  a  exploração
diminuir e reduz o retorno sobre as quantias que foram investidas. Como o
objetivo  central é o lucro, e não a vida do ser humano,  os  ganhos  não
seriam  compensatórios e os patrões não teriam razões  para  aplicar  seu
dinheiro  na  produção. É por isso que, diante da crise, eles  optam  por
fechar  as  empresas, reduzir drasticamente o ritmo das máquinas  ou  até
mesmo destruir a abundância. O aumento do desemprego assim provocado  vai
elevar  o  arrocho  dos  salários e a exploração  da  força  de  trabalho
proporcionando  o retorno de margens de lucro satisfatórias  que  apontam
para uma nova fase de crescimento da economia.
Entre os problemas que esta situação propõe, está o de justificar perante
os olhos da sociedade os sacrifícios que os capitalistas preparam para  a
população trabalhadora. No passado, já tivemos a desculpa do aumento  dos
preços  do  petróleo,  mas,  desta vez, nem isso  podia  ser  usado  para
explicar  a  crise do sistema, controlar o descontentamento e garantir  a
confiança popular nas leis de mercado.
Os  atentados  terroristas do dia 11 fizeram as  coisas  precipitarem.  A
economia  dos  Estados Unidos, que já estava mal das  pernas,  dá  sinais
claros de que vai entrar em recessão, de que o desemprego vai aumentar  e
de  que  várias  empresas  caminham para a redução  de  suas  atividades.
Surpreendentemente, não se registram protestos e manifestações de revolta
por parte das pessoas que acabam de perder seus empregos. No momento,  há
um  aumento  "tranqüilo"  dos que se alistam  nas  fileiras  do  salário-
desemprego e do exército, ao mesmo tempo em que os árabes se tornam  saco
de  pancada  no  qual muita gente já desabafou sua raiva  e  seu  próprio
sentimento de impotência.
O  patriotismo,  alimentado pela guerra, faz com que o  orgulho  de  "ser
americano" oculte as contradições gritantes que fizeram crescer o fogo da
crise  e  que,  agora, serão esquecidas. O senso comum não  tem  a  menor
dúvida:  Osama  Bin Laden é o verdadeiro responsável pelo agravamento  da
situação  econômica do país. Mais uma vez, os capitalistas  agradecem  e,
como  já  fizeram  ao longo da história, se preparam para  transformar  o
esforço  de  guerra  na razão que justifica todo e  qualquer  aumento  da
exploração. Em nome do combate ao terrorismo, os lucros das empresas  vão
voltar a ter um futuro promissor.
Além  de  dar  um sentido palpável à crise econômica, os atentados  devem
destravar  as  negociações para a formação da Área de Livre Comércio  das
Américas  (ALCA), ao mesmo tempo em que colocam obstáculos  à  rodada  de
negociações  no interior da Organização Mundial do Comércio  (OMC).  Bom,
vamos  pegar  um  bicho  de  cada vez e mostrar  a  relação  entre  estes
elementos e a crise da qual falávamos antes.
No  que diz respeito à ALCA, a recusa de países como o Brasil em apressar
a  formação  de um mercado comum das Américas se baseia numa  constatação
muito  simples:  o  baixo  preço das mercadorias produzidas  nos  Estados
Unidos  (às  vezes, a custos subsidiados) acabaria levando à falência  um
número  significativo de empresas que não têm a menor condição de  entrar
nesta  competição  em  pé de igualdade. Para que isso  não  aconteça,  os
países  da  América  do  Sul  vêm taxando uma  longa  lista  de  produtos
importados das nações do norte com a finalidade de elevar seus  preços  e
proteger  suas economias até que sejam eliminados os efeitos devastadores
da competição internacional.
Inicialmente, se previa que as coisas ficariam como estão até janeiro  de
2005,  data  a  partir da qual seria iniciado o processo de  redução  dos
impostos e seriam removidas as barreiras para a livre comercialização dos
produtos entre as duas Américas. Sentindo a chegada da crise, em 1999, os
EUA  começaram  a ampliar as pressões para reduzir significativamente  os
tempos  que antecediam a integração das economias do continente. A  razão
era  muito  simples: o aumento de suas exportações ajudaria a apressar  a
saída da crise de superprodução. Na medida em que a sobra fosse exportada
para  a  América do Sul, os lucros nos Estados Unidos parariam  de  cair,
várias  empresas  seriam abertas para dar conta das novas  encomendas  ao
mesmo  tempo em que muitas outras estariam sendo fechadas em países  como
Brasil e Argentina.
Sim,  você  entendeu  bem.  Uma das saídas  para  a  crise  dos  EUA  era
justamente a de exportá-la para outros países apressando a implantação da
ALCA.  Acontece  que o Brasil não comprou esta idéia e  isso  colocou  em
ponto-morto  a  discussão do mercado comum das Américas.  As  negociações
pararam  e tudo parecia indicar que Bush teria mesmo que esperar  janeiro
de  2005. Com o clima de chantagem criado pelas declarações de que  "quem
não está do lado dos Estados Unidos está do lado dos terroristas" é de se
esperar  que  as  pressões para acelerar o ritmo da ALCA se  ampliem  nos
próximos  meses.  Isso ocorreria porque para reativar a economia  e  para
arcar com os custos da guerra os EUA precisam de recursos, entre os quais
figuram os do aumento de suas exportações.
No  que  diz respeito à Organização Mundial do Comércio (OMC), os  norte-
americanos  vêm  sendo acusados de lançar mão de práticas  protecionistas
(como  a  imposição de taxas aos produtos de outros países ou a definição
de  quotas rígidas de importação de certas mercadorias) e de aumentar  os
subsídios concedidos aos agricultores. Estas medidas, que visam  proteger
a  economia  estadunidense  da concorrência internacional,  ferem  várias
normas  da  OMC  e,  antes dos atentados, os países europeus  estavam  se
organizando para que as negociações dos próximos meses fossem  favoráveis
aos interesses de suas economias. Pelas últimas informações, o calendário
de  reuniões  preparatórias  acaba sendo esvaziado  pelo  desenrolar  dos
acontecimentos.  Enquanto  isso, as incertas e sombrias  perspectivas  de
futuro para a economia mundial e para as relações internacionais estão se
encarregando de questionar a conveniência da rodada de negociações da OMC
começar em 2002 e abrem caminhos para a implantação de exigências que não
são favoráveis aos países pobres.
Como  você  já  deve ter entendido, os atentados do dia  11  de  setembro
ajudaram  a  matar  mais três coelhos: culpam os terroristas  pela  crise
econômica, pressionam para acelerar os tempos da ALCA ao mesmo  tempo  em
que tendem a reduzir as exigências de mudança na política econômica norte-
americana no interior da OMC.
O  quarto  coelho  é tão importante quanto os anteriores.  A  reação  dos
Estados  Unidos  aos  ataques terroristas apaga as  diferenças  entre  os
movimentos de resistência (que assumem a forma de uma guerrilha armada) e
aqueles que podem realmente ser definidos como terroristas. Esta confusão
abre o caminho da repressão violenta contra aqueles grupos cuja luta  vem
ganhando o apoio da opinião pública internacional.
Aproveitando  o sentimento de indignação que se espalhou  pelo  mundo,  a
Agência  Estadunidense de Combate às Drogas, por exemplo, se apressou  em
incluir  o Exército Zapatista de Libertação Nacional do México (EZLN)  na
sua  lista  de  movimentos  terroristas a serem  combatidos.  Apesar  dos
zapatistas não ter realizado nenhum atentado e não estarem envolvidos com
o  tráfico, as acusações norte-americanas vão no sentido de pressionar  o
governo  mexicano a adotar uma saída militar para o conflito que  vem  se
desenrolando desde 1º de janeiro de 1994. Entre as principais razões  que
explicam  esta  postura,  está o fato de que  o  EZLN  e  as  comunidades
indígenas que o apóiam ocupam uma região muito rica em petróleo e urânio.
A  coisa  foi  tão descarada que, temendo o pior, tanto o  governador  do
Estado de Chiapas como o encarregado do governo pelas negociações com  os
zapatistas, Luis H. Alvarez, se apressaram em declarar aos jornais que  o
EZLN  não  pode ser confundido com um grupo terrorista por ter  objetivos
sociais bem definidos e também não há envolvimento de seus integrantes no
tráfico de entorpecentes.
Como  você  pode ver, os Estados Unidos não perdem tempo. A lista  destes
grupos  parece  ser longa e, se as intenções norte-americanas  não  forem
desmascaradas, pouco a pouco, qualquer manifestação contra os  interesses
dos  poderosos  pode vir a ser considerada uma forma  de  terrorismo  por
representar  um  atentado  contra a ordem. Os  mais  diversos  grupos  de
resistência  que organizaram os protestos de Genova, Praga, Washington  e
Seattle seriam colocados sob suspeita pelo simples fato de existirem.
Apesar  do  cansaço e das feridas, o quarto pica-pau decide  voltar  para
ajudar  os  demais que se esfolam na árdua tarefa de furar a muralha.  Um
profundo  silêncio de reflexão se apodera do quarto onde estou escrevendo
estas últimas linhas. Revolta e esperança formam um turbilhão que empurra
à ação, a levantar a cabeça e começar a caminhar. Sozinho com todos estes
pensamentos  olho  pela janela de onde vejo entrar um  pombo-correio.  Os
seus  movimentos inquietos me fazem entender que se trata de algo urgente
e  me  apresso  a  abrir a mensagem que ele traz. Nela está  escrito:  "A
humanidade  está em perigo. Os que dizem estar do lado do bem  são  lobos
disfarçados  de cordeiros. Não há tempo a perder. Convide os pica-paus  e
os  demais  pássaros  de todas as cores, tamanhos, raças  e  religiões  a
correrem  para  a muralha. Precisamos abrir novos buracos  para  que  nas
escolas,  nas fábricas, nos campos, nos bairros e em todos os  cantos  da
terra  mais  pessoas possam enxergar o mundo que atrás dela  se  esconde.
Urge organizar as forças para enfrentar a onda de exploração e morte  que
ameaça se abater sobre o planeta".
Bom,  o  recado  está  dado. Vou entregar ao pombo-correio  uma  mensagem
avisando  que o relato está pronto e vai ser divulgado. Tomara  que  isso
ajude a fazer com que uma revoada de pássaros levante vôo e use seu canto
de  múltiplas línguas para deter a guerra e construir um mundo onde a paz
seja o fruto de uma árvore chamada justiça.
Emilio Gennari. - Brasil 18 de outubro de 2001.
<[email protected]>
---
Bibliografia:
Além  das inúmeras matérias publicadas no jornal Gazeta Mercantil,  foram
consultados os textos que seguem:
·  Ahmed Rashid, El Taliban: exportando extremismo, em Foreign Affairs em
espanhol, novembro-dezembro 1999.
·  Antonio  Negri, El terrorismo, enfermedad del sistema, em La  Jornada,
México, 15 de outubro de 2001
·  Delip Hiro, Las conseqüências de la jahad afgana, Inter Press Service,
21 de novembro de 1995.
·  Iván Valdés, EE. UU. necesita controlar la region petrolifera en torno
a  Afganistán . La guerra del petrolero George W. Bush, em El  Siglo,  Nº
137, ano 2001. Obtido através da página eletrônica da revista.
·  José  Antonio Egido, Afganistán: cuando los comunistas  protegian  los
derechos  de  las  mujeres, em Rebelión, 26 de setembro de  2001.  Obtido
através da página eletrônica da revista.
· Lester W. Grau, La política Del Oleoducto e el surgimiento de uma nueva
región estratégica: Petróleo e Gas natural del Mar Caspio y Asia Central,
em Foreign Affairs em espanhol, janeiro-fevereiro de 1998.
·  Michael T Klare, La nueva geografia de los conflictos internacionales,
em Foreign Affairs em espanhol.
· Michel Chossudovsky, Osama Bin Laden: um guerrero da CIA, em La ornada,
México, 23 de setembro de 2001.
·  Noam  Chomsky, Hegemonia ou sobrevivência, divulgado através da página
eletrônica da revista Z-net em 3 e 4 de julho de 2001.
·  Noam Chomsky, A política dos Estados Unidos - Estados rebeldes, estudo
divulgado através da página eletrônica do Centro de mídia independente em
17 de setembro de 2001.
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