DESMATAMENTO INESPERADO
 

Onde está o Ibama quando mais se precisa dele?
Relato da minha cineangiocoronariografia

A idéia de um tubinho se esgueirando por dentro das minhas artérias não me agradava nem um pouco. Mas fato é que, depois dum checkup de rotina, o doutor fez uns achados estranhos no meu coração e me tascou uma paulada de exames. Pelo jeito, tive um infarto há coisa de uns três anos, mas foi coisa pequena, sem grandes sintomas. Não me lembro de dor nem pressão no peito. Apenas, no final de 1997, umas batidas meio fora de compasso num momento de severo impacto emocional. Mandei examinar logo depois e estava tudo aparentemente ok. Só agora, depois de uma viagem que fiz, voltei a examinar e apareceu-me essa cicatriz no coração, lembrança dum infarto silencioso. Na prova de esforço o médico classificou meu desempenho quase como o de um atleta, apesar de eu trabalhar sentado, ter uma vida sedentária e comer todo tipo de porcaria que se vende no mercado. Pelo visto, devo esta performance aos exageros físicos que pratiquei quando era garotão esportista. Quanto aos exames, o tira-teima teria sido essa tal de cineangiocoronariografia que fiz anteontem e que vou contar como foi.

Mandaram ficar oito horas em jejum e chegar no pedaço às 11 da manhã. A moça me levou prum quarto com cinco leitos, mandou-me tirar a roupa toda e vestir um aventalzinho verde fechado atrás. Bem, fechado é força de expressão. Cadê que eu conseguia dar um laço nas tirinhas que fechariam o maldito atrás? Nunca! Aprendi a dar o laço no sapato, na sunga, na gravata e ponto final. Fazer lacinho nas costas é coisa de acrobata chinês, algo muito acima de minhas capacidades mundanas. Bem, foi aí que começou minha degradação moral. Depois de fazer o melhor que pude com o avental, tive que calçar umas sapatilhas de papel branco e sair do banheiro de volta ao leito. Havia um espelho, mas preferi nem me olhar para não reter na memória uma imagem tão desagradável de mim mesmo. Lá estava eu, caminhando pelo corredor, um galalau careca de quase dois metros, barba mal feita, sapatilhas de bailarina e bunda de fora. Acho que nunca se viu um paciente dar passos tão largos e silenciosos naquele estabelecimento. Lépido como um raio adentrei o recinto, fiz a mira e, num salto espetacular, aterrissei abruptamente no leito que me estava reservado.

Como o exame tinha sido marcado meio às pressas, não tive muito tempo para perguntar como seria a coisa toda. Sabia que tinha algo a ver com a virilha direita e que através dela receberia um fino tubo que iria até o coração ou bem perto dele. Bom, se os cobras no assunto escolheram um ponto de entrada tão longe do destino, devem eles ter lá os seus motivos. Fui na maior fé e aguardei o retorno da enfermeira, não sem algum nervosismo.

Ela voltou. Era jovem, simpática e jeitosa. Muito educada, aproximou-se com uma bisnaguinha plástica de soro, pendurou-a num gancho e pôs-se a apalpar minha mão esquerda em busca da vítima, a veia. Para facilitar o trabalho, aplicou-me o que mais tarde chamou de garrote, um pedaço de elástico grosso de borracha que tinha a desagradável propriedade de me puxar, dolorosamente e de uma só vez, cerca de oitenta cabelinhos do meu braço, enquanto a profissional continuava à procura do lugar ideal para me furar. A espetada foi moleza, mas disse ela que a veia dobrou. Não foi culpa minha, disse eu. Eu não dobrei nada, foi iniciativa da veia. Talvez, se tivesse sido apalpada mais demoradamente ela não dobrasse. Mas nada disso importava agora, a tal veia já tinha sido julgada inviável pela moça e lá foi ela apalpar outras áreas ali perto, depois de sacar fora o espeto. Na segunda fincada encontrou finalmente uma veia mais compreensiva e ali ficou instalado o meu primeiro tubinho. Era translúcido e ia subindo até a bisnaga, parando num copo onde se processava um pinga-pinga infinito. Água salgada entrando sem parar pra dentro de mim, tudo bem.

Agradável e faladeira, a moça foi preparando meu espírito e meu humor para o próximo passo: "Senhor, agora eu vou ter que raspar os seus pelos púbicos." Fiquei aparvalhado diante da notícia. Anos e anos cultivando aquela selvagem pentelheira e a agora, sem o menor aviso prévio, chega uma desconhecida e se vê no direito de devastar minha mata particular. Tive que conter meu protesto veemente, diante das circunstâncias. A jovem argumentou dizendo que os tais pelos poderiam ser foco de infecção. Devo ter feito uma cara bem feia diante dessa infame insinuação. Afinal, sempre me esmerei por manter a região imaculadamente asseada, com um cuidado que beira o compulsivo. Cada fio dali sempre foi tratado com um cuidado especial, ensaboado, shampuzado e enxaguado com zelo inigualável. Infecção é o escambau. Se ela e os demais consideram a pentelhagem como foco potencial de infecção é por que as deles são mal lavadas. Mas isso não é problema meu e, ademais, eu não estava em posição de contrariar as normas da casa.

Notável o poder que as mulheres têm. Em outras circunstâncias, um ritual como aquele poderia ter sido precedido das mais tórridas carícias e me levado literalmente às nuvens. Mas aquela moçoila pegava no meu equipamento com um desprezo inacreditável. Para ela era um pedaço de pelanca inerte e desinteressante. Será que ela havia me visto andando pelos corredores naquele traje deprimente? Sei lá eu, só mantive fora da cena o meu olhar, voltado para cima, fitando a cabeceira do leito, cheia de tomadas, fios, estetoscópios e aparelhos. E nisso prosseguia a impiedosa enfermeira, me melecando com alguma poção de barbear saco e rapando com precisão suíça o sovaco entre minhas pernas e as áreas circunvizinhas.

Estranho foi notar que, à medida que se processava a coisa, foi se estabelecendo um vínculo de confiança e aproximação entre eu e a carrasca. Ao final, já a considerava como uma velha amiga e passamos a conversar sobre amenidades as mais leves possíveis. Enxugou-me como uma mãe o faria e cobriu-me com o lençol verdinho com a suavidade de uma freira. Fui deixado só no aposento, à espera da chamada do médico para mudar de sala e começar o exame. Passaram-se alguns minutos até que eu tivesse a coragem de enfiar a mão por baixo das cobertas e inspecionar a área desmatada. Destruição absoluta. Tudo lisinho e sem graça. Fiquei imaginando o visual daquilo e me deu até tonteira. E quando começassem a crescer novamente os pelos? Como ia pinicar aquilo, uma loucura. E a namorada, como iria encarar aquele visual bizarro? A raspagem atingiu até um palmo abaixo da virilha, invadindo o lado de dentro da coxa. Bem, agora já estava feito.

Pensei que iam me empurrar deitado numa maca até a sala do exame, mas veio uma outra enfermeira e me pôs a andar, acompanhando-me com alguma dificuldade pois, em função da nossa diferença de alturas, era difícil para ela manter alta a bisnaga do soro que estava conectada ao meu pulso.

O aposento da máquina era digno dum filme de ficção científica. Um lindíssimo aparelho eletro-cibernético ocupava o centro da sala, acoplado a uma prancha metálica muito estreita, onde me deitaram. Estreita demais: uma bobeada e eu despencaria lá de cima. Pincelaram-me generosamente com iodo na área raspada. A sala era gélida e comecei a tremer de frio. Pedi à segunda enfermeira que me antes de começar a cerimônia me mostrasse o cateter, tubinho que iria vasculhar minhas entranhas. Ela pegou o bicho ainda dentro do invólucro plástico de fábrica. Era super comprido, fininho e azul. A ponta era encurvada e parecia bem maleável no todo.

Chegaram os médicos, disseram alô, vestiram coletes grossos de chumbo, calçaram luvas e adornaram-se com todos os outros paramentos pertinentes. Cobriram-me com panos pesados, um dos quais tinha uma janelinha que expunha a área da virilha. O comandante da festa era sério mas simpático e trocou alguma prosa comigo. Mandou-me pôr as mãos atrás da nuca pois iríamos começar. Um suorzinho gelado me escorreu por trás da orelha.

Ficou procurando na minha virilha a artéria femural e aplicou uma injeção anestésica. Moleza. Imaginei que fosse dar um tempo para a dita cuja fazer efeito, mas não demorou nada e estava ele cutucando o ponto escolhido com alguma coisa que imagino bem pontuda. Não via nada. Imediatamente senti o calor de muito sangue escorrendo pela coxa, pareciam litros e litros mas, pelo que me disseram depois, não foi tanto assim.

Estava bem nervoso e percebi que tinha a musculatura toda tensa. Achei melhor relaxar e procurar me distrair. O corpo eu relaxei, mas distrair não dava. A sensação do cara enfiando algum treco ali pra dentro da virilha é braba. O tal artefato chama-se bainha e é um tubo mais largo por onde ia entrar o cateter. A perna inteira reage e dá um desconforto medonho. Concentrei minha atenção para o telão do monitor e qual não foi minha surpresa ao ver a ponta encurvada no cateter já no meio da tela. Perguntei se já tinha chegado ao coração, pois não tinha sentido nada me percorrer por dentro até chegar lá. Confirmado, o cateter já estava no lugar certo. Na ponta dele, na que estava do lado de fora, é claro, havia alguma seringa em que o doutor me injetava um contraste rádio-opaco à base de iodo. A tela era uma imagem tipo radiografia. Ele mandava eu encher o pulmão e na tela eu via minhas costelas se movendo. O pulmão parecia uma cortina que ia se desdobrando à medida que eu inspirava. Quando estava cheião, o doutor mandava pirão no iodo e, grande barato!, o vulto pulsante que eu sabia ser o coração se enchia de artérias pretinhas, configurando precisamente a irrigação da bomba cardíaca. Umas mais grossas, outras fininhas, formavam uma malha incrível em volta do coração, mas em poucos segundos o iodo se dispersava e os vasos sumiam. Novo comando e eu enchia o fole de novo, com nova injeção e assim fomos nós, repetindo e repetindo o processo. Quando queria um ângulo novo, o doutor controlava a posição angular do canhão de raios-X e o colocava em diagonal, do meu lado, em cima, em baixo, em suma, ao seu bel-prazer. E ia gravando tudo em video.

Vi minhas coronárias em plena ação e tentei entender o que os médicos confabulavam enquanto apontavam para a tela. Havia um monte de pontinhos pretos, nódulos no coração que pareciam ter retido mais iodo. Mas eram apenas dobrinhas nas artérias. Uma delas em especial estava bem obstruída e exigiu atenção especial dos examinadores. Outra, num outro ponto, também parecia entupida. Só então tive certeza de que tenho problemas a resolver ali.

Quando se cansaram de injetar e filmar, os médicos me avisaram que iam terminar o exame introduzindo uma quantidade bem maior de iodo de uma vez só. Anteciparam que eu ia sentir um calor dentro do peito e que isso era normal. O cara mandou ficha e vi na tela o coração inteirinho, aurículas e ventrículos, tudo pretão, cheio de iodo. Foi um verdadeiro show em tempo real. Pena que não era a cores.

Mas o lance do calor foi imediato, uma das sensações mais pauleiras e estranhas que já tive. A coisa invade o peito como se fosse uma explosão. Depois sobe para a cabeça, pela nuca, tal como uma labareda líquida. Em seguida desce pela espinha, queimando tudo até lá em baixo, dando a impressão que você vai se urinar e se borrar todo. Tudo isso em apenas dois segundos que parecem uma eternidade. O desconforto desapareceu logo depois, ao mesmo tempo em que foi sumindo a mancha preta na tela. Mas fiquei assombrado com a sensação por alguns minutos ainda. Não foi brincadeira não.

Perguntei se precisava operar pra botar alguma ponte, mas o doutor acha que basta desobstruir colocando um stent em cada entupimento. Stent é um engenhoso anelzinho que se enfia artéria adentro e que é posicionado e alargado por um cateter precisamente no lugar da obstrução do vaso. Dá nervoso só de pensar. Mas acho que disso eu não vou escapar.

O médico mandou a enfermeira sair e contou alguns casos de outros exames do mesmo tipo, histórias que acabaram emendando em piadas de sacanagem que quase me derrubaram da prancha metálica, de tanta risada que dei. Já mais tranqüilo, fiz todas as perguntas que quis e só então relaxei de verdade.

Um médico assistente ficou pressionando um tempão e com muita força o ponto de entrada na minha virilha. Depois o apertou com um chumaço gigantesco de gaze e grudou o dito com metros e metros de esparadrapo direto na pele careca, indo desde a parte de trás da coxa, passando pela virilha e indo até a frente à altura da cintura. A despeito de toda a raspagem, ainda pregou esparadrapo em centenas de pelos na coxa, o que 24 horas depois significou um verdadeiro tormento na hora de tirar o curativo.

Terminado o suplício, disseram-me para ficar com a perna direita totalmente parada e arrastaram-me de volta para o meu leito que tinha rodinhas e foi empurrado de volta para o quarto. Eram 13h00 e tive que ficar imóvel deitado por oito horas, até as 21h00. Por sorte estava muito bem acompanhado -- namorada e mãe -- e o tempo passou que nem senti. Só fiz dormir e comer. Depois fui pra casa e fiquei repousando e mancando até tirar o curativo ontem. Hoje já estou caminhando normalmente, sentindo apenas um dolorido no lugar onde entrou a bainha. Apenas um pequeno hematoma circunda o furo e é claro perdura a hedionda imagem da minha genitália careca, uma trombinha branca brotando dum local inóspito onde antes verdejava uma floresta. Para ir hoje de manhã à praia, só mesmo com um short tapando aquela indecência horrenda que uma mera sunga revelaria vergonhosamente. Nas areias de Copacabana, ao caminhar, entendi perfeitamente então o que a jovem enfermeira quis dizer quando afirmou que eu iria me lembrar dela por um longo tempo, ou seja, enquanto não parasse de espetar esse meu vasto vale depilado.

- c.a.t.

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Este exame descrito acima se deu em 2001-01-16.
A angioplastia foi em 2001-01-23 na Casa de Saúde São José. Foto abaixo:

- c.a.t -