O GLOBO - Informática Etc. -
Carlos Alberto Teixeira
Artigo:
229
- Escrito em:
1995-07-31
-
Publicado em:
1995-08-14
A família tá limpa
Imagine um torcedor alvinegro distraído, envergando impávido a camisa do Glorioso, entrando na arquibancada do Flamengo em dia de decisão. É claro que a próxima cena vai ser um botafoguense todo ralado e esfarrapado, descendo a rampa em alta velocidade, sob intenso sarrafo da torcida flamenguista. Agora imagine uma tradicional revista norte-americana afirmando que a maioria das famílias típicas dos EUA, quando acessa a Internet, está basicamente atrás de pornografia. Poxa vida, logo a imaculada família típica, a base da cultura ocidental. Ah não, isso não fica assim.
Apenas à guisa de memory refresh, semanas atrás, a reportagem de capa da revista Time foi sobre o tema "ciber-pornografia", ou seja, pornografia no ciberespaço. A base da polêmica matéria foi um "estudo" feito por um ex-estudante da CMU (Carnegie Mellon University) chamado Martin Rimm, concluindo que o problema da pornografia na rede seria seríssimo e que menores impúberes estariam constantemente sujeitos a ataques diretos ou indiretos nesse âmbito. A repercussão foi a mais barulhenta possível e quem vem acompanhando o Caderninho pegou essa estória desde o princípio. Na Internet então nem se fala: o pessoal caiu de paulada em cima da revista, tentando provar que o dito estudo não retratava a verdade do que acontece na Internet. A Time pagou caro por ter promovido e divulgado este material sem o cuidado de submetê-lo previamente a uma revisão por especialistas independentes.
Como consequência, um cidadão chamado Mike Godwin, trabalhando em conjunto com dois integrantes da EFF (Electronic Frontier Foundation), Beth Noveck e Ben Manevitz, conseguiu que cópias do malfadado estudo chegassem às mãos de repórteres e acadêmicos em todos os EUA. Isto resultou numa cobertura pela imprensa, que acabou por desacreditar o estudo de Rimm, apontando nele sérias falhas metodológicas e conclusões indefensáveis. Com isso, a própria Time acabou fazendo ressalvas à sua controversa reportagem de capa, num artigo que publicou apenas três semanas depois da inana. Além disso, o próprio editor senior da Time, Philip Elmer-Dewitt, vestiu a carapuça, em suas mensagens nos fórums públicos da WELL (Whole Earth 'Lectronic Link).
Diante do furdunço que se formou e visando salvaguardar um dos mais caros valores morais, que é a imagem da família, a própria Universidade Carnegie Mellon decidiu antecipar resultados parciais de um outro estudo -- o HomeNet -- que teve início em fevereiro de 1995, com duração prevista de três anos. A questão abordada: "Será que a família norte-americana média está realmente devorando material pornográfico na Internet?"
Além da CMU, também patrocinam o HomeNet as empresas Bellcore, US West, Bell Atlantic e pelo correio (US Postal Service). A conclusão parcial do estudo é que as famílias não são grandes consumidoras de informações sobre sexo, obtidas em redes de computadores. E diz mais: pelo jeito, não há indícios de que o quadro venha a se alterar tão cedo.
No início da pesquisa, 50 famílias na área da cidade de Pittsburgh receberam computadores Mac e acesso livre à Internet, com e-mail, Usenet, Web e tudo mais. As famílias foram encorajadas a participar dos newsgroups da Usenet e de quaisquer outros grupos que fossem encontrando pela frente, de acordo com seus interesses. Os pesquisadores fizeram detalhadas amostragens sobre como os 150 indivíduos destas famílias estavam usando a Internet.
Visando descobrir o que gente comum faz na redezona e, em particular, nos newsgroups Usenet, chegaram a algumas conclusões. A primeira delas é que, pelo menos na área geográfica estudada, a família média está bem menos interessada em material de cunho sexual do que previa o relatório Rimm. E mais, o interesse do pessoal nesses assuntos provou ser transiente, ou seja: a maioria das pessoas que de fato liam newsgroups ligados a sexo, o faziam uma ou duas vezes num período de meses. Os que peruaram em mais de duas ocasiões um desses newsgroups constituem menos de 1/5 do grupo estudado, sendo em sua maioria adolescentes e homens adultos. Mesmo dentro desse subconjunto, o acesso às áreas sexy constituía apenas uma pequena fatia de sua atividade nos newsgroups como um todo.
Agora sim, me arrependo de ter dormido tanto nas aulas de Estatística na faculdade, pois fiquei embatucado com essa metodologia que usaram. Veja só, leitora: segundo o pessoal da CMU, a análise de utilização dos newsgroups Usenet mostrou ser extremamente sensível à técnica usada na amostragem. Os pesquisadores do estudo HomeNet costumavam colher amostras de tráfego a cada 10 minutos. Entretanto, se usassem intervalos de uma semana entre duas amostragens, newsgroups menos significativos acabavam parecendo ter pesos até duas vezes maiores do que segundo a técnica anterior. Assim, quanto mais frequente era a amostragem, menor a importância atribuída aos grupos visitados ocasionalmente, incluindo os newsgroups sacanológicos.
As análises apontaram como mais populares os newsgroups tratando de assuntos do dia-a-dia dos novos surfistas da Internet, tipo "qual é o lugar mais fácil aqui em Pittsburgh para se fazer um exame para tirar carteira de motorista?". A Usenet oferece tantos grupos doidos que só uns poucos, dentro dos visitados pelas cobaias, estavam na lista dos "top 40".
Entre os usuários que "acompanharam" (que acessaram três ou mais vezes) um certo newsgroup na Usenet e que nele postaram novos artigos, chegou-se a uma taxa de 1 para 2. Isso quer dizer que, entre os que lêem e postam, o pessoal costuma ler duas vezes mais que postar na Usenet. Se compararmos essa taxa à dos que nunca postaram nada, a taxa é de 1 para 10. É o famoso "efeito moita", tão comum também nos BBS's.
No final das contas, os pesquisadores da CMU ressaltaram que, dentre os 150 usuários-cobaia, apenas 3 (três) postaram artigos em newsgroups sexualóides. Gente finíssima, em suma.
Posso até ver a leitora fazendo carinha de quem chupou limão. Se quiser tirar a cisma sobre o HomeNet, pode obter maiores detalhes com a dona Jane Manning [email protected] ou com o Robert Kraut [email protected].
Postou? Não postou? Tenho aqui nos alfarrábios um troço que pode ser bastante interessante para a leitora, curiosa do jeito que é. Se quiser descobrir, por exemplo, se seu noivo Astrovaldo alguma vez postou artigo na Usenet, envie e-mail para [email protected], despreze o Subject e no corpo da mensagem escreva: send usenet-addresses/astrovaldo
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