O GLOBO - Informática Etc. - Carlos Alberto Teixeira
Artigo: 233 - Escrito em: 1995-09-06 - Publicado em: 1995-09-11


233 semanas de amor


Hoje vou contar um historinha. Era uma vez um sujeito que usava BBS. Usava não, abusava. Ficou alucinado e passou a dedicar horas a fio por dia ao prazer de ler mensagens, escrever replies e baixar arquivos. Conheceu muita gente boa, abriu sua cabeça e foi ótimo. Belo dia, de tanto postar mensagem, foi chamado para escrever uma coluna sobre BBS num grande jornal.

Tempos depois, chegaram uns amigos do peito e mostraram para ele uma tal duma rede chamada Internet. Ele recebeu um manual emprestado e depois ganhou de presente um acesso a essa rede. A cabeça do rapaz quase estourou de tanta coisa que começou a esponjar. Com o tempo, a coluninha dele passou a tratar quase exclusivamente sobre esse assunto, tanto que mudaram o nome da dita cuja de forma a acompanhar a mudança.

Mas sem que esse cidadão se desse conta, em paralelo a todo esse aprendizado e crescimento informático, bebeéssico e internético, alguma coisa o inquietava. Ao longo desse tempo, o mancebo foi batendo uns papos, lendo uns livros e consultando certas fontes na própria Internet que começaram a lhe abrir os olhos para uma série de coisas que ele desconhecia.

Primeiro ele começou a olhar para o seu Brasilzão e para o seu mundão e ficou meio que preocupado com as possíveis consequências desse achatamento mental planejado das massas, junto com a informatização maciça da sociedade e com essa propaganda meio exagerada da Internet. Segurar essa onda parecia impossível nessa altura do campeonato, especialmente porque a pressão é muito grande e vem lá de cima. Hoje, no meio informático, ter um e-mail é símbolo de status e quem não tem uma home-page na Web já é olhado meio de banda.

Ninguém fala dos perigos duma nova tecnologia quando ela é lançada. Só muito depois a gente se conscientiza dos males que ela trouxe e aí já é tarde demais. Isso vive acontecendo e a gente fica assistindo feito bobo: fertilizantes, agrotóxicos, televisão, energia nuclear, canos de PVC, engenharia genética, computadores e por aí vai.

E essa nossa Internet? Quanto anúncio, quanto artigo, quanta capa de revista e reportagem de TV. A propaganda exagerada acaba criando uma "necessidade" que na verdade não existe, anunciando um produto fascinante a que poucos têm acesso e que todos passam a desejar ardentemente, mesmo sem saber direito para que serve. A maior forçação de barra. Uma demanda criada artificialmente, da maneira mais descarada possível, e que não necessariamente é positiva para um país como o nosso. Será que precisamos mesmo de computadores nas salas de aula? Quanta gente essa informatização desempregou? E o pessoal morrendo de fome, de moléstias? E a gente analfabeta, de cérebro lavado, vendo novela toda noite e sonhando com luxos da zona sul? Será que, ao invés de tanta tecnologia, não estaríamos precisando de aplicações intensivas de mão-de-obra?

Aí, um dia desses, esse tal sujeito foi a uma festa de aniversário de crianças e ficou observando os meninos e meninas da cidade grande. Uns robozinhos vedores de televisão e bebedores de Coca-Cola. Perguntou quem é que sabia soltar pipa, jogar bolinha de gude, subir em árvore para comer goiaba. Ninguém sabia. Deu pena e fez com que ele olhasse pra si mesmo.

Ele leu manuais, muitos manuais. Há 16 anos vinha lendo manuais. Encheu a cabeça de linguagens, algoritmos, tabelas, sistemas, utilitários, sintaxes, técnicas, otimizações, softwares e protocolos. E cada vez que soltavam uma versão nova, maior e mais monstruosa e lá ia o bobalhão aprender tudo de novo e encher a cabeça com mais minhoca. Acabou caindo na real que tudo isso era apenas para manter um mercado de hardware e software aquecido e crescendo desmesuradamente, num turbilhão que não tem mais fim.

Ficou anos sentado de cara para um monitor, quebrando o olho naquela telinha. Sentado e barrigudo, sedentário e comendo porcaria. Andando pela sua cidade querida com medo de espectros, de balas perdidas e de assaltantes. Não leu Homero, não estudou Gnose, não tocou órgão, não pegou onda, não andou a cavalo, não lutou esgrima, não aprendeu alemão, não sabe matar uma galinha e nem cultivar uma horta. Agora ele está pensando em trazer um nenem para o mundo e achou que é melhor dar uma paradinha para retomar o pé da situação. É claro que ele continuará navegando pelas redes, mas certamente mais devagar e com a antena mais ligada do que nunca.

Disse-me o camarada que, sempre que puder, nos mandará notícias sobre suas andanças. Parece que vai sair agora em peregrinação religiosa e não sabe quando volta. O cara é meio doido mesmo, mas como é meu amigão, acho melhor acompanhá-lo pra ver se não vai se meter em encrenca.

PS: Feliz aniversário, Papai.


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