O GLOBO - Informática Etc. -
Carlos Alberto Teixeira
Artigo:
321
- Escrito em:
1997-10-15
-
Publicado em:
1997-10-20
A coroa endiabrada
Uma jornalista paulista amiga minha especializada em coisas de Internet chegou em casa certo dia e foi navegar na Web. Sua irmã mais nova aproximou-se, ficou olhando e tomou coragem de perguntar qual era a graça de ficar tanto tempo pendurada na rede. Sendo uma profissional no ramo, conectar-se fazia parte de seu ofício, afinal. Mas diante da salutar curiosidade da irmã, resolveu ensiná-la os rudimentos da navegação na rede. Primeiro deu noções de e-mail e já foi despertando a curiosidade da menina para os contatos mundiais que poderia fazer com a ferramenta. Depois, quando a irmã já estava se virando razoavelmente bem, resolveu apresentá-la ao IRC (Internet Relay Chat). Como a leitora deve saber, trocar e-mail é uma coisa, digamos, desconectada. Usando o termo comum, diz-se que o e-mail é algo "offline" (contrário de online). Assim, você envia e recebe mensagens de/para pessoas que não necessariamente estão conectadas no mesmo instante que você. Já nos bate-papos do IRC, todos os palestrantes estão "logados" simultaneamente, o que confere a essa modalidade de conversa virtual um caráter bem vivo, movimentado e sincronizado. Não deixa de ser uma bagunça organizada, mas em pouco tempo a gente se acostuma à confusão e se sente à vontade para papear despreocupadamente.
Foi o que aconteceu à irmãzinha da escriba. Meteu-se em channels de namoro e romance (channels são como "salas" ou canais do IRC, onde se trata de assuntos específicos), e começou a granjear admiradores, especialmente depois que divulgou sua foto, tirada no casamento dum parente. Sendo já uma gata de nascimento, ela estava lindona e super-produzida no retrato e literalmente virou a cabeça dos freqüentadores do channel. Choveu gavião de todas as idades. A mãe, curiosa e meio desconfiada, observou a filha enfiada no micro horas a fio dia e noite e se interessou pela coisa. Divorciada há anos, em poucos dias a coroa, que nem sabia digitar, aprendeu a usar com maestria o mIRC, software preferido entre os viciados no chat online, e começou a dar conselhos e ajudar a filha. A jovem, por sua vez, se viu tão assediada pela galera masculina do channel que resolveu fazer um acordo com a mãezinha. Ficaria com todos os caras com menos de 30. Os "velhos" ela deixaria para a mãe, que fingiria ser a própria filha e tocaria adiante os papos virtuais sem revelar sua verdadeira identidade. Trabalho em equipe, esse era o lema das duas.
Mas foi aí que a coisa engrossou. Imaginem uma mulher com 50 e paulada, com uma baita experiência de vida, encarnada virtualmente no corpo de uma gatinha de 19 anos, esbanjando sabedoria, sacadas rápidas e surpreendentes, cutucadas espirituosas e sensualidade exorbitante. Resultado: massacre total. Os "velhos" do channel ficaram completamente enlouquecidos e fascinados. E a coroa, que há anos não vivenciava paixões ardentes, se viu totalmente inebriada pela intensidade dos avanços de seus derretidos interlocutores. O ego da balzaquiana, é claro, foi lá para a estratosfera e em pouquíssimo tempo a mamãe ficou completamente viciada no IRC, monopolizando o micro da família e jogando a filha pra escanteio.
Senhora meio gorduchinha, tornou-se uma sedentária e, naturalmente, a saúde foi para o beleléu. Fuma feito uma desesperada, alimenta-se pessimamente e passou a dormir pouquíssimas horas por noite. O micro fica ligado 24 horas por dia e a qualquer momento ela pode ser chamada por algum apaixonado fervente que demanda sua atenção imediata. Pasme a leitora, ao saber que ela chegou a alugar uma LP. Sabe o que é uma LP? É uma linha privada para comunicação de dados em alta velocidade. Ela nem precisa mais usar a Telesp para se ligar à Internet. Conseguiu um desconto com um parente influente e agora tem seu micro ligado ininterruptamente a rede.
Encontrei essa senhora numa festinha de criança em São Paulo e fiquei até meio com pena do estado físico da figura. Dores na coluna, fumando um cigarro atrás do outro e olheiras que pareciam crateras. Mas nada abalava sua simpatia, especialmente agora que ganhou uma netinha, filha da minha colega jornalista. No final das contas, a coroa assumiu todas os contatos IRC e e-mail da filha mais nova, que por sua vez agora acha toda essa coisa de Internet uma pura perda de tempo e decidiu-se a experimentar a fundo a vida no plano real.
Quanto aos iludidos que não param de se apaixonar por aquela maravilhosa e jovem mulher virtual, que tem o charme de uma deusa e a sabedoria de uma anciã, pobres camaradas. Um deles, de 37 anos, chegou a pegar um avião lá do Nordeste para ir conhecer a inspiradora beldade. É claro que deu com os burros n'água e foi o maior desencontro, pois obviamente a musa não compareceu ao encontro. O segredo da balzaca fantasiada de Miss Sampa jamais será revelado.
Mais tarde na festa, sozinho com a coroa, eu perguntei se a coisa toda valia mesmo a pena, argumentando que aquilo era no fundo uma fuga da realidade. Ela replicou: "É fuga mesmo, e daí? Eu nasci de novo quase aos 60. Experimento paixões intensas, mesmo que sejam apenas virtuais. Sou desejada, endeusada e amada. Saúde, sono, comida, passeios, não quero nem saber. Que se dane o resto -- minha vida é o IRC... e a minha netinha."
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