O GLOBO - Informática Etc. - Carlos Alberto Teixeira
Artigo: 392 - Escrito em: 1999-02-24 - Publicado em: 1999-03-01


Memória RAM não importa


Lembrar-se das coisas, isso sim, é o desafio

 

Quando comecei a engatinhar na informática, no mainframe IBM/370 lá da PUC-RJ, aquele computador gigante tinha 256 kb de memória e fazíamos o diabo com ela. Depois vieram os micros. Quem usa PC há algum tempo certamente se lembra de quando só tínhamos 640 kb de memória RAM no bom e velho IBM-XT. Hoje, com o hardware cada vez mais potente e o software sempre exigindo mais, já existe programa que reclama quando a gente só tem 64 Mb de RAM na máquina. Onde será que isso vai parar, se é que vai?

Quando se fala em tanta RAM assim, cabe perguntar à leitora como é que ela está de memória. Não indago sobre a memória do seu microcomputador. Quero saber da sua memória cerebral. Lembra bem das coisas? Nomes, datas, acontecimentos, endereços, fisionomias? Se me permitir, vou dar-lhe meu depoimento pessoal. Minha capacidade de armazenar informações tem se atrofiado ao longo do tempo. Já há vinte anos mexendo com computadores e mais um tempão antes usando calculadoras eletrônicas, venho acompanhando com tristeza a diminuição de minha habilidade em fazer contas e decorar informações. Às vezes me vejo diante de dois ou três números de telefone que preciso anotar e, sem uma caneta à mão, tenho grande dificuldade em decorá-los. Dizem que a cura para isso é fazer ginástica cerebral, sair decorando textos, listas de nomes, números e outras coisas assim. Até que faz sentido. É claro que não pretendo ter a fabulosa memória de Sócrates, mas me contentaria com mera migalha de seu legendário poder mental.

Mas, o quê? Não conhecia a leitora sobre Sócrates e sua espantosa memória? Pois bem, vou contar-lhe agora mesmo. Foi o meu bom paizão, o sábio CatPai <[email protected]> quem primeiro me falou, eu ainda moleque, sobre a estupenda potência cerebral deste afamado filósofo. Sócrates era líder de uma escola iniciática, onde se ensinava sobre os mistérios da alma a discípulos escolhidos a dedo, após terem eles passado por terríveis e dificílimas provas de caráter, inteligência e coragem.

Nos vastos gramados do colégio iniciático de Sócrates, reinava severa lei do silêncio. Os milhares de discípulos trajavam vestes brancas e ficavam o dia inteiro caminhando meditativamente pelos campos de grama aveludada. A cada uma dessas dedicadas criaturas era facultado dirigir uma e apenas uma pergunta ao venerável mestre Sócrates, de dez em dez anos. Isso quer dizer que, assim que o noviço entrava para a Ordem, deveria permanecer em silêncio absoluto durante dez anos, findos os quais poderia dirigir a palavra ao Mestre, em voz baixa, sob a forma de uma única e concisa pergunta. Ouviria então a iluminada resposta e passaria outro decênio a meditar profundamente sobre ela, até estar apto a levar sua próxima questão ao grande instrutor.

Era decerto uma inspiradora imagem, ver Sócrates passeando entre os bosques, diariamente, parando aqui e ali para responder às inspiradas indagações de seus esforçados discípulos. Mesmo com a tal restrição dos dez anos de silêncio, o filósofo até que dava duro, pois dado o número de alunos, ele não parava de ser interpelado com novas perguntas.

Certa feita, solicitou ingresso um novo discípulo, jovem assaz talentoso, que trazia no seio de sua alma dúvidas realmente transcendentais e inspiradoras. Enfrentou corajosamente as provas da água, do fogo, do poder e do medo e finalmente mostrou-se digno de transpor os majestosos portais da Escola Socrática. Após a tocante cerimônia de aceitação e sequioso de saber, o mancebo foi notificado de que deveria guardar silêncio sepulcral e entregar-se à meditação profunda até que, dez anos depois, Sócrates em pessoa responderia à sua primeira pergunta. Bravamente o neófito se manteve silente e meditabundo por todo o tempo exigido. Chegado o grande dia, meio ofegante diante da emoção, o novato evocou todo seu autocontrole, respirou fundo e dirigiu-se ao Mestre, que encontrou deslizando contemplativo pelo belo gramado, dentre os outros silenciosos alunos que também envergavam o alvo paramento. Em postura solene, perguntou ele a Sócrates, com o espírito em chamas: "Mestre, o senhor gosta de ôvo?" O filósofo franziu a testa quase imperceptivelmente, trespassando com o olhar a alma de seu aluno, e respondeu prontamente com toda sua avassaladora sabedoria: "Sim... (longa pausa) Gosto". O discípulo, enrubescido, ajoelhou-se, beijou as mãos de seu Guia e afastou-se mal podendo conter sua emoção e imbuído da mais intensa devoção espiritual. E passou os dez anos seguintes concentrado, matutando e filosofando sobre a resposta de Sócrates.

Nesse meio tempo, obviamente, o Mestre filósofo não parou de se ocupar com seus inúmeros afazeres e com as contínuas perguntas que lhe faziam diariamente seus outros alunos. Passaram-se os dez anos. Numa tarde nublada, transcorrido o prazo estipulado no mais rígido silêncio, nosso mesmo discípulo aproximou-se do Mestre, de modo a lhe fazer sua segunda pergunta. O sábio ergueu seu olhar e de imediato reconheceu o discípulo. Este, por sua vez, curvou-se respeitosamente diante do célebre pensador e disparou, após tanto tempo: "Como?" E Sócrates nem piscou, respondendo de pronto: "Com sal".


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