O GLOBO - Informática Etc. - Carlos Alberto Teixeira
Artigo: 460 - Escrito em: 2000-06-19 - Publicado em: 2000-06-26


O menor país do mundo


HavenCo compra Sealand e faz dele um paraíso fiscal digital

 Durante a Segunda Guerra Mundial, a Grã-Bretanha estabeleceu bases na costa leste da Inglaterra de modo a se defender dos ataques aéreos alemães. Eram plataformas oceânicas, projetadas em 1940 pelo arquiteto inglês Guy Maunsell <www.users.zetnet.co.uk/mongsoft/forts.htm>, que se apoiavam no fundo do Mar do Norte e eram capazes de abrigar tropas e armamentos destinados a derrubar aeronaves e mísseis balísticos alemães. Uma dessas bases chamava-se Roughs Tower e, ao contrário de todas as outras, foi instalada em águas internacionais, ou seja, além do limite de 7 milhas náuticas que definia então a linha das águas territoriais britânicas. Com o fim da guerra, todas as bases foram abandonadas e a Roughs Tower ficou lá, perdidona, em águas sem dono. Knock John Fort 1942

Em setembro de 1967, o ex-major inglês Paddy Roy Bates ocupou com sua esposa Joan esta ilha artificial e proclamou-a estado independente, o Principado de Sealand. O governo inglês, depois de uma série de pisadas na bola jurídicas, acabou sem querer reconhecendo a soberania do principado. Foi a festa para a "família real" de Sealand. Em 1975, proclamou-se a constituição de Sealand e daí para bandeira, hino, moeda e passaportes, foi só um passo. Três anos depois, o país foi invadido por alguns holandeses e um alemão. Depois de uma pequena guerra, o príncipe retomou seus domínios e saiu da encrenca feliz da vida, com a soberania de Sealand reconhecida pelo governo alemão. Em 1987, a Grâ-Bretanha estendeu suas águas territoriais para 12 milhas, engolindo Sealand que, por sua vez, também estendeu seu limite para as mesmas 12 milhas, mastigando parte da costa inglesa. Ficou o dito pelo não dito e acabou que ninguém engoliu ninguém. 

Em 1997, começaram a aparecer pelo mundo passaportes de Sealand falsos. Só existem cerca de 300 deles verdadeiros, mas já se fala em 150 mil passaportes fajutos. O autor do golpe de falsificação foi o mesmo alemão safado que foi escorraçado de Sealand em 1978. Knock John Navy Fort

Recentemente, o Príncipe Roy Bates se viu com a saúde abalada, o que fez com que a família real se mudasse de Sealand. No final de 1999, a empresa HavenCo Ltd. <www.havenco.com> iniciou negociações com o príncipe e, no início de 2000, ele acabou por vender a posse e o controle sobre o principado. 

Os fundadores da HavenCo são um grupo de "cypherpunks" idealistas que pretendiam criar em Sealand o único refúgio seguro de dados no planeta, oferecendo o supra-sumo em segurança física e legal para donos de web sites. A empresa permite que qualquer um, seja qual for sua procedência, abrigue seu site nas facilidades ditas ultra-seguras localizadas em Sealand, supostamente a salvo de hackers, advogados e governos restritivos e intrometidos. 

A idéia da HavenCo é salvaguardar a liberdade de expressão individual na internet, provendo meios para que nem empresas poderosas nem agências de inteligência possam meter o bedelho nos sites residentes em Sealand. A liberdade só não é absoluta porque a HavenCo declara não permitir que seus servidores sejam usados para spam, nem para ataques contra redes, nem pornografia infantil. O resto... vale tudo. 

A leitora, que não é boba, já sabe muito bem que tipo de muamba vai ficar guardada em Sealand. Tudo que tiver a ver com propriedade intelectual e direitos autorais vai poder residir tranqüilamente nos discos da HavenCo. O pessoal que lida com essas questões já está tiririca da vida e nos newsgroups ligados ao tema a briga tem sido braba. Uns alegam que essa coisa de criar um país e depois usá-lo como paraíso fiscal digital é uma brincadeira de mau gosto. Mas outros contra-argumentam que foi assim mesmo que muitos países hoje soberanos foram criados. Aconteceu com muitas nações que estavam sob domínio britânico, com a ex-União Soviética e, antes delas, com partes do Império Romano. 2.jpg (13485 Byte)

Até agora não houve qualquer encrenca legal no que tange às operações da HavenCo em Sealand. Houve sim, arranca-rabos anteriores, ainda no tempo do príncipe. A Guarda Civil Espanhola, por exemplo, está investigando acusações de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas e de armas por pessoas que se declaravam representantes do governo de Sealand. A família real, naturalmente, nega que seus súditos tenham se metido em mutretas desse tipo. 

Fato é que tem muito facínora e malfeitor ostentando passaporte sealandês. Um deles foi Andrew Cunanan, o assassino do figurinista Gianni Versace, que depois acabou se matando. Poucos meses depois do crime, outra nódoa na reputação do principado: mais de US$ 5 milhões em lucros com um esquema ilegal de pirâmide foram lavados num banco da Eslovênia por um correntista que também portava passaporte de Sealand. Se a leitora também quiser adquirir um desses passaportes vagabundos é só visitar o site <www.principality-sealand.net>, que se diz site oficial de Sealand mas que, segundo a família real, é totalmente não-oficial. Segundo o presidente da HavenCo, Samir Parekh, o príncipe Roy é gente finíssima e jamais se envolveria em maracutaias usando o nome do principado. O site oficial de Sealand, pra valer, é <www.sealandgov.com>. The Royal Coat of Arms

A equipe que ocupa a base oceânica que sustenta Sealand guarda suprimentos e comida para um ano sem contato com o mundo exterior, mas mesmo assim, dizer que a plataforma constitui um depósito altamente seguro para dados é quase uma piada. Seria facílimo para qualquer nação ou grupo armado tomar o controle da estrutura e dizimar todo mundo na instalação, apoderando-se dos servidores. 

A HavenCo promete privacidade e anonimato completos a seus clientes. No entanto, já que cada nó da internet guarda registros de suas comunicações com outros nós, as transações na grande rede acabam deixando um rastro facilmente acompanhável. Prova disso é a quantidade de casos em que hackers e criminosos foram capturados através da análise de logs de acesso em servidores espalhados pelo mundo. Seja como for, essa história de Sealand é bem fora do comum e certamente vai deixar a leitora com isso na cabeça, pelo menos por um tempinho.

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