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Lições do chat |
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Artigo: | 496 |
Ensinamentos de uma fracassada paixão virtual |
Publicado em: | 2001-04-30 | |
Escrito em: | 2001-04-24 |
A cena se passa em Brasília numa dessas madrugadas de chat. No ardente papo online, um casal que ainda não se conhece pessoalmente vive uma intensa paixão virtual que já dura vários meses. Ela é uma jovem e simpática mãe solteira e gerente de uma rede de lojas de shopping. Ele é casado e alto funcionário do governo. Já passaram daquela fase do anonimato completo ao ponto de estarem se falando pelo telefone várias vezes por dia. O camarada está completamente alucinado pela dona. Arranja as desculpas mais engenhosas para dar uma saidinha para ligar para ela, tantas vezes quantas puder. E ela vai atiçando a paixão dele, marcando encontros e não comparecendo. Olhando a situação assim de fora parece loucura. Afinal, porque diabos essa mulher não se encontra logo como cara e consuma logo essa paixão tão forte? A resposta é simples. Ela não é exatamente ela, mas sim uma outra mulher inventada, uma personalidade virtual.
Quem me contou a história foi ela própria, a mulher verdadeira, não a fantástica. Primeiramente aproximou-se deste cara usando seu nome real. A coisa foi ficando séria e ela foi se entregando por inteiro. Até que, por algum motivo, o sujeito esfriou e lentamente começou a se afastar. Magoada com a rejeição, ela absorveu o impacto como pôde e deu um tempo. Semanas depois, como já sabia direitinho as salas de chat que ele freqüentava, reapareceu em cena mas desta vez usando um nick falso e apresentando para ele uma personalidade muito mais sedutora e cativante. Em primeiro lugar declarou-se casada e não mãe solteira -- parecia menos ameaçadora. Seu marido supostamente viajava muito e a deixava só. Assumiu um discurso mais solto e, por coincidência, muito mais de acordo com as fantasias que ela já sabia que ele tinha. Desta forma, ela não estava inventando nada, exceto seu estado civil. Estava sendo ela mesma, dando vazão às suas fantasias mais escondidas. Quanto ao cara, enquanto a esposa dormia, ele se derramava de amores por ela no chat. Durante o dia, viva atormentado pela ânsia de conhecer aquela amante virtual tão deslumbrante. Mas ela não podia encontrá-lo de jeito nenhum, pois não se sentia apta a levar a fantasia adiante no cara-a-cara. Quando falaram ao telefone, o sujeito levou o maior susto, dizendo que a voz dela se parecia muito com a de outra mulher que havia conhecido na rede. É claro, era ela mesma, em sua versão anterior, a real. Mas nem por isso ele desconfiou de nada e prosseguiu abrindo cada vez mais sua vida pessoal para ela, de forma até imprudente. Revelou segredos íntimos de seu casamento, confessou roubalheiras suas no importante cargo financeiro que ocupava e chegou a engendrar planos de abandonar a família para ir viver com sua amada da internet.
Por uma dessas armações do destino, ela certa feita recebeu numa das lojas a visita da esposa dele. Soube que era ela quando viu seu cartão de crédito. Tratou logo de puxar papo e tentar sacar alguma informação nova. Pescou o que pôde e constatou que, além de lindíssima e atraente, a mulher do cara era gente fina e provavelmente boa companheira e ótima mãe para os filhos deles. Ficou então a pensar por que motivo o marido de uma mulher como aquela andava se envolvendo com alguém que não conhecia, virando noite após noite num romance via internet e nitidamente se entregando a essa paixão.
Fato é que, depois de muito cozinhar o cidadão, nossa heroína acabou cedendo à tentação de encontrá-lo pra valer. Marcaram num restaurante chique na Capital Federal e lá estavam os dois frente à frente. Tendo sabiamente concluído que seria impossível manter sua identidade virtual dali por diante, ela resolveu abrir a verdade logo de cara, mesmo antes de qualquer beijinho ou algo mais íntimo. Disse assim, na lata, que ela era aquela outra de antes, a mulher real que havia conhecido também no chat e de quem ele havia se afastado.
A reação do homem foi terrível. Sentiu-se traído e perdeu logo a compostura, rompendo imediatamente a relação que apenas começava no mundo verdadeiro, deixando a mulher aos prantos sozinha no restaurante. Dava dó ver a dona contando tudo isso e novamente voltando a chorar com a triste lembrança.
Logo que se acalmou e terminou o relato que me fazia, ela parou quieta, com o olhar meio perdido. Disse que estava sofrendo muito e que sabia ter feito o cara sofrer também. Mas havia tirado daquilo tudo uma grande lição. Se algum dia viesse a viver com alguém, casada ou não, jamais deixaria de manter acesa a paixão com doses de criatividade, ousadia e, acima de tudo, comunicação franca. Ela havia concluído que era isso que mantinha acesa a chama daquela paixão virtual. Era algo que ele não tinha em casa, mesmo estando casado com aquela mulher sensacional. Faltava uma interface rápida e aberta. No chat, um casal animado e apaixonado transmite ao outro, sem barreiras de qualquer espécie, tudo que está sentindo, tudo que deseja, tudo que pensa e tudo que pretende que o outro faça. Cada um se esmera no prazer, tanto em recebê-lo quando em proporcioná-lo ao outro. O teclado e a tela são canais tão pobres que exigem do casal um empenho muito maior no sentido de enviar a mensagem emocional e sedutora na medida certa, às vezes com frases explícitas, outras de forma sutil e velada. Concluiu que era essa sinceridade sem barreiras que tanto hipnotizava o seu amante perdido. Da mesma forma ela mesma havia sido conquistada por atitude semelhante da parte dele.
Estava aí então o grande ensinamento de tudo aquilo para ela. Qualquer que fosse a relação que viesse a manter no futuro com um novo homem no mundo real, ela seria calcada na livre e franca expressão dos desejos, emoções e pensamentos, dando margem a ações intensas, criativas e brotando do fundo do coração e da alma. Igualzinho como se faz no chat, sendo que sem nicks falsos, é claro.
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