Artigo: 588 - Publicação: 2004-03-01
TECNO-TROTES - Vítimas indefesas dos modernos espíritos-de-porco
Não lembro o nome do marinheiro, mas era lá da roça, interior do Rio Grande do Sul. Simplório e gente boa até dizer chega. Entrou na nossa sala com ares de preocupado. Estava sentindo umas dores no peito quando respirava. O oficial médico já o tinha examinado e dissera que não era nada, mas o marujo insistia que estava muito doente. Queria de qualquer jeito fazer uma abreugrafia e continuou com as lamúrias. Entreolhamo-nos e, quase telepaticamente, sabíamos o que fazer. Enquanto um distraía o rapaz, outro ligou da sala ao lado para o doutor, confirmando que era só chilique do camarada. Um terceiro já tinha começado a digitar o laudo, enquanto eu e mais outro começamos a preparar o paciente. "Ué, vocês fazem abreugrafia aqui no CAC?" -- não foi fácil segurar o riso.
Nosso setor era o CAC, Cartografia Apoiada por Computador, lá na Diretoria de Hidrografia e Navegação do Ministério da Marinha, em Niterói. No andar de baixo tínhamos duas máquinas Gerber gigantes: um fotoplotter e um plotter convencional, ambos acoplados a uma unidade de fita magnética, grandona, quase do tamanho duma geladeira. Dois rolos de fita, cada um com uns 30 centímetros de diâmetro, ficavam num compartimento com tampa acrílica escura. Digitei um comando simples no console, que adiantava um pouco a fita, rodando os rolos por alguns segundos, produzindo um dócil solavanco no hardware e gerando aquele belo ruído pneumático típico da eletromecânica em funcionamento. Digitei mas não dei o "enter", deixando a ação para o momento apropriado.
O enfermo perguntou se precisava tirar a camisa. Que nada, a máquina era muito poderosa e os raios X atravessavam o tecido numa boa. Encostamos o pobre sujeito no equipamento de modo que o queixo dele ficava certinho na quina superior. "Encha o pulmão de ar, prenda a respiração, não se mexa." O homem arregalou os olhos à espera da chapa. Teclei o "enter" e a unidade fez perfeitamente bem seu trabalho de cúmplice. "Pode respirar." Na mesma hora o laudo foi disparado para a impressora. Peguei o papel e entreguei ao quinca. Ele leu alto, com dificuldade, e quando chegou ao "TUDO NORMAL", deu aquele sorriso de satisfação. Derreteu-se em agradecimentos e saiu da sala quase levitando de tão convencido que estava de sua saúde perfeita.
Um trote tecnológico como este, que só teve efeitos positivos, não credenciou ninguém a ir para o inferno. Já o que fizeram com o estagiário lá na PUC nos anos 70, aí são outros quinhentos. Era uma manhã quente de verão e o jovem estava sendo treinado na operação das impressoras, que eram notáveis e parrudas printers IBM 1403, se não me falha a memória. Faziam um barulhão danado e não paravam de imprimir léguas e léguas de formulário contínuo. Os supervisores e os veteranos da operação já tinham combinado tudo e o rapazote estava lá a postos, picotando as listagens e colocando-as nos escaninhos, tudo com a agilidade de um ninja. Eis que de repente alguém sutilmente apertou o Stop. Depois de horas em operação contínua, massacrando os ouvidos de quem está perto das impressoras, quando se aperta o Stop numa engenhoca daquelas, segue-se um silêncio tão sepulcral que parece que o universo inteiro parou de se mover. Foram segundos intermináveis, em que o estagiário ficou com o semblante tão abobalhado, que vê-lo e não gargalhar era quase impossível. Depois de algumas confabulações entre os mais antigos, todos sisudos e fingindo preocupação, o chefe da operação soltou um impropério impublicável e comunicou a causa da parada repentina: "Era só o que faltava -- acabou o asterisco". O garoto parecia não acreditar. E nessa ficou apenas uns instantes, pois logo em seguida foi mandado ao centro da cidade comprar um saquinho de asteriscos. É claro que, logo depois que saiu, a turma já estava ligando para a loja indicada ao mancebo, informando do trote e pedindo para encaminhá-lo a uma outra loja tal, assim, assim. Ligaram depois para a outra loja e depois para mais outra, fazendo o pobre coitado rodar o dia inteiro feito besta, seguindo inocentemente indicação após indicação, até o final do expediente.
Mas nenhum tecno-trote supera o que se deu numa pequena delegacia policial nos EUA. O suspeito não dava com a língua nos dentes de jeito nenhum. Em vez de apelar para a borrachada, os tiras preferiram usar um truque. Enquanto prosseguiam o interrogatório numa sala fechada, outros policiais pegaram um escorredor de macarrão, desses de alumínio, e ligaram nele uns fios, fazendo parecer que estava conectado a uma máquina que era, na verdade, a fotocopiadora. Naquele outro aposento com pouca luz, dissimularam a Xerox com alguns painéis e puseram nela um original escrito com letras garrafais: MENTIRA. Seguraram o suspeito pelo braço, levaram-no à sala penumbrosa e disseram que era um detetor de mentiras, ajustando o escorredor de macarrão na cabeça do elemento. Refizeram as perguntas e a cada resposta pouco convincente o delegado apertava o Start da copiadora, fazendo cuspir uma reprodução do cartaz intimidador, atormentando o interrogado. Depois de algumas respostas erradas, o suspeito, diante de tanta tecnologia, acabou confessando tudo.
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