O GLOBO - Informática Etc. - Carlos Alberto Teixeira
Artigo: 469 - Escrito em: 2000-10-17 - Publicado em: 2000-10-23


Vulcão, enxofre e defeito de memória


CPU funcionando sem memória RAM não adianta nada

Escuridão total e muito vento. Quando voltei à consciência estava caído numa encosta, com a cabeça no chão e todo sujo de uma cinza escura e grossa. Mexi-me e me apalpei, buscando algum ferimento ou osso quebrado. Tudo em ordem. Abri os olhos e o pó preto me feriu a vista, por causa das lentes de contato. Havia um vilarejo lá em baixo, muito longe. Estava eu quase no alto duma montanha preta e esquisita. Via mar por todo lado, terra firme só bem longe, ao horizonte. Naquele caos mental eu não lembrava quem eu era, nem que ilha era aquela, nem o que eu estava fazendo ali. Um estrondo fez tudo tremer. Olhei para cima e vi pedras e lava sendo cuspidas para o alto. Um vulcão! Estava sozinho, quase no topo de um vulcão e sem memória. Reconheci minhas roupas, meu relógio e minha mochila. Levantei-me devagar, muito tonto. E o vulcãozão mandando brasa, volta e meia arrotava e vomitava, como se estivesse mandando eu me mexer. Eram umas 14h30 e eu só sabia que tinha que me mandar dali, rápido. Se caísse a noite eu estaria em apuros. Havia um caminho reto no acentuado declive de cinzas. Comecei a descer zonzo, mas depois de poucos passos caí com a cara no chão e apaguei novamente.

A próxima coisa de que me lembro foi de ter sido acordado por um cara magrelo que descia sozinho o vulcão. Falava inglês com sotaque de alemão e tinha o cabelo espetado. Ajudou-me a sentar e perguntou-me o que tinha acontecido. Eu não sabia. Ele me contou então que há cerca de uma hora antes eu havia conversado com ele lá no topo. Eu havia subido pela face norte junto com dois casais e tínhamos todos passado quase uma hora explorando a cratera e só saindo dela quando o vulcão grunhia e a lava ia começar a jorrar. Isso contrariou todas as normas de segurança, para terror dos outros excursionistas que estavam no cume. E quando virava o vento, a nuvem amarela de enxofre venenoso caia sobre nós e saíamos nos arrastando com o rosto junto ao chão, em busca de ar limpo. Em suma, divertimo-nos a valer. Ele me disse que eu era brasileiro, informou-me que aquilo era a Itália e que estávamos no vulcão Stromboli <http://stromboli.net>, numa ilha ao norte da Sicília. Disse-me também que havíamos feito um rango perto da cratera e que eu havia decidido não passar a noite no topo, conforme meu plano original. O casal mais novo que estava comigo também topou descer e assim foi. A próxima coisa para ele foi, ao descer mais tarde, encontrar-me caído sozinho no caminho, desacordado e aparentemente ileso.

À medida que ele falava, minha memória ia voltando, bem devagar. Esse camarada foi um santo pois desceu comigo o vulcão inteiro, aturando minha desorientação e o meu papo de bêbado. Perguntei mais de vinte vezes o nome dele e de onde era. E até agora não me lembro do nome do cara. Só sei que ele é austríaco.

Chegamos ao vilarejo e a noite já caía, com o vento prometendo uma terrível tempestade. Na pracinha da igreja de San Vincenzo ainda tinha bastante gente e o cara me perguntou se eu conseguiria me arranjar sozinho numa boa. Disse que sim. Despedi-me emocionado do meu salvador e pedi desculpas pela chateação. Dei a ele um cartão com meu email e tiramos uma foto, para eu depois conseguir me lembrar da figura dele.

Minha situação era a seguinte: CPU OK e memória RAM defeituosa. É um desafio muito interessante ter que se virar sozinho numa situação assim, com a inteligência normal mas a memória de curta duração quase inoperante. Fui até o porto comprar a passagem de volta para a Sicília. Lia normalmente o horário do primeiro barco. Mas quando ia ler o horário do segundo, já tinha esquecido do primeiro. E para contar a grana, que sufoco. Pegava aquelas notas de Lira italiana e não conseguia processar mais de três cédulas. Virei-me e vi chegando Matteo e Bee Jay, ele milanês 21 anos, ela tasmaniana 20, o casal jovem que havia descido comigo. Abracei-os e contei-lhes do ocorrido. Disseram-me que estávamos descendo juntos e decidimos fazê-lo correndo. O casal meteu bronca na corrida e eu fui ficando para trás. Eles imaginaram que estava tudo bem e que iríamos nos reencontrar no vilarejo, portanto deixaram-me para trás sem preocupação. Depois de lamentarem, levaram-me ao hospital, onde o doutor concluiu que minha amnésia provavelmente havia sido causada pelo enxofre, junto com o estresse dos dias antes, em que havia visitado também o Vesúvio e o Etna -- este segundo numa excursão com caminhão off-road, subindo demasiado rápido até mais de 3 mil metros. Medicado, arranjei pousada e na madrugada seguinte peguei o barco de volta para reencontrar minha namorada que, avessa a alturas, havia ficado segura em Milazzo.

Foi uma experiência fascinante e finalmente realizei um sonho de guri. Fascinado pelas lendas da Terra Oca <http://paginas.teleweb.pt/~ceptico/entradas/terraoca.html> e <www.fenomeno.trix.net/fenomeno_fenomenos_1_mist-oca1.htm>, sempre desejei conhecer por cima as duas pontas da novela Viagem ao Centro da Terra de Jules Verne <www.vt.edu/vt98/academics/books/verne/center_earth>: subi em 1993 o Snaefellsjökull na Islândia e agora o Stromboli na Itália. Fica só faltando o caminho por baixo. Em suma, foi a coroação desses 47 dias de Europa, comendo e dormindo num Mitsubishi Space Runner alugado e rodando 16 mil quilômetros em 11 países. Férias inesquecíveis, exceto pela pequena amnésia daquele dia 29 de setembro. Quer ver o diário de bordo? Clique aqui.


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