O GLOBO - Informática Etc.
Carlos Alberto Teixeira -
C@T

Aventuras de um hacker que evoluiu

Artigo: 556

 Fluxo e refluxo: A vida tem seus ciclos, e neles a gente vai crescendo

Publicado em:  2002-12-09
Escrito em:  2002-12-05

 

 

Foto: Marco Antônio Teixeira - O Globo

Já tinham tentado pegar o maldito outras vezes, mas ele simplesmente sumia. Desta vez não iriam de elevador, iriam pelas escadas e sem sapatos -- só de meias, pra não fazer barulho. Os chefes da operação já não agüentavam mais aquele invasor e tinham exigido medidas enérgicas. Fazia acessos não-autorizados ao computador da Universidade usando contas de todos os departamentos, senhas externas, de clientes, entidades externas, parecia que tinha centenas de passwords o desgraçado. Tinha que ser capturado dessa vez. Madrugada e escuridão total no prédio Leme da PUC-Rio, e lá estavam eles já no quarto andar, departamento de Física, subindo em silêncio. Dois operadores do sistema /370 e os seguranças, todos meio pesadões, mas decididos. Um chute na porta e lá estava o elemento, sujeito barbudo, comprido feito um varapau. Levou um sustaço, deu um tapa no interruptor do terminal de vídeo e, ao perceber que tinha sido pego, sentou-se de volta resignado. Foi interrogado, fichado, chamado a depor na reitoria e suspenso das aulas alguns dias. Era o mesmo indivíduo que um ano antes tinha sido visto dentro da lixeira do Rio Datacentro segurando uns manuais velhos e com um monte de cartões "job" enfiados nos bolsos de trás da calça. "Perdi minha lente de contato", disse ele na ocasião, sem que os guardas dessem importância ao fato.

Meses depois de cumprir a suspensão, o operador mandou listar os usuários do Interact na console central do mainframe. Eram 18 usuários ativos, todos eles com a identificação BOIVACA. Miserável! Levantou num pulo, derrubou o café no teclado e subiu correndo vários andares do RDC para pegar o cara no flagra. BOIVACA era uma conta superprivilegiada que alguém havia criado sem permissão. Chegou esbaforido à sala de terminais da Pós-Graduação e perguntou: "Quem é o BOIVACA?" Gargalhada geral, ninguém conhecia. Depois de checar as user-IDs dos usuários, desceu de volta para o subsolo, fulo da vida, e novamente sem provas. O barbudão tinha sumido poucos segundos antes, após dar logoff nas 18 instâncias da poderosa conta, usando apenas uma tecla de função. Já não era mais pego pela segurança. Tinha conquistado o que queria e já podia virar aquela página.

Clique aqui para conhecer a história deste famoso graffittiO que tinha levado um jovem de classe média a se meter em lixeiras na calada da noite e entrar na rotina de fugir de perseguições de operadores de mainframe num campus honrado e tradicional como o da PUC-Rio? Amor pela máquina? Sede de informações? Ânsia por aventura? Tudo isso junto. Antes de conhecer o gostinho da tecnologia, já tinha vivido a adrenalina de ser grafiteiro e espalhar sua marca pelo bairro, depois pela cidade, pelo país e pelo mundo - "Celacanto Provoca Maremoto" era a frase pintada em letras garrafais em muralhas e tapumes. Mas depois do primeiro contato com um computador, foi contágio imediato. Foi assim que começou minha história em sistemas e continuo infectado por este vírus até hoje.

[ Desde os cartões perfurados até a internet banda larga -- conheça aqui, em detalhe, minha história ]

De 1979 para cá, muita coisa mudou, mas o que realmente me marcou foi o mergulho na internet em 1992. Para quem já gostava de penetrar em sistemas e fuxicar suas entranhas, não poderia existir armadilha mais fascinante do que este buraco infinito de onde se pode arrancar virtualmente todas as informações que se desejar buscar. Garimpar sites pode se tornar um vício, uma compulsão sem sentido. Todavia, se a pessoa aproveita a chance para procurar por coisas que a façam crescer e mudar de verdade, então todo o esforço terá valido a pena. É bem verdade que existe muito lixo nessa grande rede e é muito fácil se perder com besteiras e informações inúteis. Mas há também pérolas valiosíssimas, tesouros de valor incalculável a que jamais teríamos acesso se não fosse pela internet. E, na maior parte das vezes, está tudo isso disponível online inteiramente grátis. É só saber como e onde buscar.

No entanto, no meio de tantos arquivos, configurações, sites e máquinas, existe algo mais precioso do que todo o resto. É a possibilidade de contato humano com outras culturas e realidades, às vezes do outro lado do planeta. É a glória do email. Desde que mandei minha primeira mensagem de correio eletrônico, venho colecionando endereços das pessoas que realmente fizeram diferença pra mim. Alguém a quem eu tenha ajudado, ou que me deu uma força num momento difícil; figuras que expressaram uma opinião marcante ou que me indicaram alguma fonte rica em informações; amigos antigos ou novos; todos esses foram entrando para minha coleção de almas eletrônicas. Hoje já são 5.422 pessoas que fazem parte do que costumo chamar de GoldenList, o grupo que recebe minhas remessas aleatórias e sem periodicidade fixa, mensagens geralmente curtas, inusitadas e tão inéditas quanto possível.

Depois de uma fase trabalhando em sistemas como assalariado, mantive por dez anos uma firma de consultoria e, graças a ela, costumava ter durante o ano algumas janelas livres em que podia empacotar uns trecos, jogar dentro da mochila e sair viajando, geralmente para conhecer gente com quem só tinha contato até então via email. Foi assim que conheci Phil Zimmermann, criador do PGP, lá em sua casa em Boulder, Colorado. Encontrei-me com Frisk, mestre antivírus em Reykjavik, na Islândia. Depois com Peter Clark, mago do AutoCAD em Melbourne, sul da Austrália, e com Kari Salomäki, meu parceiro de intercâmbio de software, que gerencia sistemas num laboratório acelerador de prótons em Jyväskylä, no interior da Finlândia.

O contato diário com tecnologia, avanços digitais, softwares, sites e todo este avassalador excesso de informações pode ser algo muito construtivo, porém se não for tomado o devido cuidado pode causar overdose, com conseqüências às vezes graves. Três anos depois de minha iniciação na rede foi justamente o que aconteceu comigo. Confrontado com a massa gigantesca de informações que a internet oferece, iniciei um processo de ingestão indiscriminada de conteúdos. Queria engolir tudo que me aparecia pela frente. E eis que, de repente, ressurgiu o Unabomber, terrorista antitecnologia que forçou grandes jornais americanos a publicar um manifesto expondo suas idéias. Apesar de ser contra os métodos desse Theodore Kaczynski, que saia explodindo gente para lograr êxito em suas metas, fui um dos que caíram de boca no tal manifesto. E digo de coração, aquilo me marcou fundo. Até hoje a ferida está meio aberta. Eu esqueço dela, ou finjo esquecer, só para não me desestruturar novamente. Quando da primeira leitura do Manifesto do Unabomber, ainda cometi a imprudência de emendar direto no livro "Encontro com Homens Notáveis", de Gurdjieff. O resultado foi drástico. Já tinha 233 colunas semanais publicadas aqui no Caderninho e pisei fundo no freio. Pedi férias à Cora e desapareci, para talvez não voltar nunca mais. Comprei um passe de trem na Europa, mochila no lombo, e parti com destino ignorado. Foram quatro meses de peregrinação pelo Velho Mundo, à base de buffet de saladas, sandubas e suco de laranja. Oscilava entre dias de introspecção profunda, fases de conversa intensa com amigos antigos e parceiros de email, paixões cinematográficas com donzelas pelo caminho, e muita troca de energias de vida com as gentes que ia encontrando. Estava quebrando todas as pontes atrás de mim e seguia em frente sem parar. Até que cheguei à Jyväskylä do Kari e fizemos dois dias de intenso brainstorming, verdadeiro dump de memória. Debatemos sobre o universo e tudo que o circunda. Analisamos a Humanidade, nossas mulheres, nossas histórias de vida, nossas conquistas e fracassos e nos despedimos. O que tinha começado como pirateação de software via FTP, através de um newsgroup de AutoCAD no frio UNIX de numa estação Sun na PUC-Rio, virou uma amizade que resiste até hoje. Naquele ponto senti que era hora de voltar e reconstruir a vida. O Rio de Janeiro continuava aqui onde o tinha deixado. E na Redação, a Cora me recebeu de volta de braços abertos.

Fato é que voltei aos trilhos, bem mais manso e centrado, mas muito mais consciente e atento a tudo. Menos barulhento, mais agudo, e sempre bem plugado a esta nossa rede que continua sendo uma riquíssima fonte de conhecimentos e contatos. No embalo, separei-me, sassariquei muito e depois sosseguei. Hoje mais tranqüilo, casei-me de novo, já tem um ano, desta vez com a Laiz, que era minha vizinha de prédio. A firma, já a fechei há tempos. Dirigi um website durante a bolha mas ele estourou junto com ela, como o resto, e atualmente estou de volta ao expediente comercial. Quem diria, hein Carlão. Mas tem sido um bom passeio, sem a menor dúvida.

Bem, agora, se quiser me dar a honra, que tal uma visitinha à minha homepage? Fica em http://catalisando.com

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